sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O homem que calculava

Seguindo na operação resgate, comentários escritos dia 24 de fevereiro:

O homem que calculava - Malba Tahan
  
Outra pendência da minha infância: havia lido parte do livro e abandonado, não sei se por medo ou preguiça. Mas o caso dos 35 camelos nunca havia saído da minha cabeça (creio que parei ali ou pouco depois), e após ler certos elogios à obra acabei resgatando esse curioso romance (mesmo que em outra edição, pois a que eu tinha desapareceu) e comecei a lê-lo. 

Ele tem certas falhas estruturais, diria: a começar pelo personagem narrador, que é uma figura totalmente unidimensional e que só serve de suporte ao protagonista-título, sendo bem forçadas suas reações a certos eventos e esquisita sua narração. E como entender o bizarríssimo final com a conversão do calculista? Um livro em que as personagens vivem inseridas em profunda religiosidade e a invocam para qualquer feito ou ação, como assim de repente toda a fé é renegada em prol de outro credo, encerrando a história com uma moral convencional bastante tendenciosa? 

Mas isso tudo é o de menos. O romance é muito engenhoso e os enigmas, desafios, charadas e problemas são incríveis. Beremiz Samir é um personagem de presença fabulosa, dando ao leitor a serenidade de perceber que todas as soluções matemáticas são, afinal, fáceis, pois simples e lógicas. É um prazer acompanhar o "crescendo" de expectativa com as bizarras proposições a ele formuladas, e como imaginar a saída de várias delas? Está tudo diante de nossos olhos, mas Beremiz Samir é quem tem a calma e a tranquilidade de compreender essas regras, de expor o que é natural mas pouco observado. Ainda que suas faculdades pareçam inumanas às vezes, como quando diz quantas letras e palavras tem o Corão. 

O exotismo do oriente árabe é um pano de fundo interessante, que Malba Tahan define em poucas mas detalhadas descrições, ambientando bem a intriga e criando um bom pano de fundo histórico, com personagens reais e os hábitos do cotidiano e do professar religioso e político daquela gente. Também nisso o relato é feliz. 

Agora a vontade é de procurar mais de Malba Tahan mexendo com isso.

P.S.: Acabei encontrando minha edição antiga (cuja capa é essa de fundo branco aí em cima).

P.S. 2: Acredito que o final convencional foi uma imposição do Estado Novo, pois o livro foi publicado em 1938.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Grandes animadores: Andreas Deja

A Disney tem um histórico assombroso de animadores geniais. Não é fácil mensurar a influência desses artistas, dentro e fora dos estúdios disneyanos, ainda mais se considerarmos as décadas de incríveis trabalhos em animação que eles proporcionaram ao cinema.

Nas últimas décadas houve uma renovação do "staff", já que os animadores de mais idade (entre os quais os míticos nine old men) já estavam se aposentando ou falecendo. Após um período de baixa produtividade entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira dos anos 1980, no final dessa última década a Disney animada voltou a causar sensação, com o esforço conjunto de jovens talentos (sobretudo os nine new men) que entusiasmaram o público com personagens e histórias fascinantes. O pontapé foi dado com Oliver e sua turma, mas o merecido sucesso veio com A pequena sereia, em 1989. Havia já bons anos em que a Disney não fazia uma legítima obra-prima, e a sereiazinha inspirada em Andersen foi quem possibilitou uma impressionante retomada de empenho, talento e lucro para a então cansada animação de longas metragens.

Andreas Deja teve um papel crucial nessa época. Após trabalhar em O caldeirão mágico, As peripécias de um ratinho detetive, Uma cilada para Roger Rabbit e Oliver e sua turma, ele "estourou" com a criação, principal desenvolvimento e supervisão de personagens incríveis em filmes tão variados quanto A pequena sereia, A bela e a fera, Aladdin e O rei leão. Sua especialidade eram os vilões: ele que responde por Gaston (o grosseiro e arrogante caçador antagonista da Fera), por Jafar (o invejoso conselheiro do sultão de Agrabah) e por Scar (o tenebroso tio de Simba). Isso não impediu que ele também trabalhasse com resultados louváveis em personagens simpáticos como o Rei Tritão (pai de Ariel), Lilo (a garotinha havaiana de Lilo & Stitch), Tigrão (amigo de Pooh), Hércules e até mesmo Mickey Mouse (em Fantasia 2000)!

Deja também é um tipo de "showman", um dos mais reconhecíveis artistas dessa retomada: aparece em convenções, comenta em vários DVD e até mesmo mantém um blog, em que posta artes próprias e também tesouros cavados no passado, exibindo suas inspirações e deleitando os admiradores de artes Disney. Andreas é um grande conhecedor da história das animações disneyanas, e não foi à toa que escolheu fazer parte do time do então "desprestigiado" O rei leão (haviam-lhe proposto fazer a "primeira opção" Pocahontas): sua paixão por Mogli, o menino lobo o forçava a optar por um projeto onde poderia desenhar e animar animais!


A nota triste nessa sinfonia é que Deja deixou a Disney recentemente. Pouco se sabe ainda sobre suas perspectivas de novos trabalhos com animação, mas seu legado já é importantíssimo, e suas personagens/criações só parecem melhorar a cada revisão dos filmes.

Alguns trabalhos de Andreas Deja:

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Deux anglaises et le continent

Continuando com o resgate, impressões minhas sobre o segundo romance de Henri-Pierre Roché, escritas dia 14 de abril deste ano:

Deux anglaises et le continent - Henri-Pierre Roché
(Duas inglesas e o continente)

O livro que inspirou o "As duas inglesas e o amor", do Truffaut. A primeira surpresa: é um livro composto APENAS de diários e cartas. Isso dá uma intimidade incrível ao relato, tornando críveis todas as incoerências das personagens e possibilitando ao leitor observar como elas se portam na privacidade, como se expressam e como desejam se manifestar e contar as coisas que se passaram com elas. É delicada a forma como a passagem do tempo é trabalhada, sendo que as datas das cartas e diários vão de 1899 (quando Claude, "o continente", tinha 19 anos e conheceu Anne, uma das duas inglesas) até 1927. Fica apenas uma impressão estranha no fim, pois apesar de ser um belo término é de se pensar: por que a comunicação é interrompida ali? Apesar de haver um evidente sentido de "renovação" no último caso narrado, fica o desejo por saber ainda mais daquelas vidas, o que é um triunfo e tanto do livro.

Roché escreveu antes "Jules e Jim", mas acho que este livro é bem mais feliz. A beleza "telegráfica" das frases curtas está bem melhor dosada que no romance anterior, e as personagens não parecem apenas fazer coisas estranhas e aleatórias: há um sentido inclusive na incoerência de certas passagens, o que demonstra nas pessoas do livro fraqueza, confusão mental, ingenuidade, esquecimento ou qualquer outra coisa equiparada. É uma decisão muito bonita, expor a nobreza dessas fragilidades.

Assim como no filme, a personagem que mais me encantou foi Muriel, dividida entre a religiosidade primitiva e uma forte independência de espírito. Anne, sua irmã, é mais decidida a não ligar para convenções.

Há coisas bastante polêmicas e intensas no livro: desvirginamentos, masturbação (feminina!), prostituição. É nítido o desejo de Roché de não esconder nada (afinal, é quase uma autobiografia sua), e desenvolver as ideias com serenidade e grande beleza, mesmo quando as coisas parecem desesperadamente grotescas.

Um belo romance, confissões de um autor que já beirava os oitenta anos.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Brigitte Bardot

Nos últimos anos, escrevi pequenos comentários acerca da maior parte dos filmes e livros etc. que consumi. Quase tudo postei em redes sociais, que dispõem de uma memória muito curta; para esses textos não se perderem, penso em postá-los aqui, aos poucos. Para começar, minhas impressões sobre o primeiro volume das memórias de Briggite Bardot, impressões escritas dias 5 e 6 de outubro de 2011:  

Iniciais BB - Brigitte Bardot 

 Eu adoro a BB, de verdade. 

Mas há anos ela é muito impopular; nem tanto pelos filmes (mas ainda a subestimam como atriz), mas pelas suas controversas opiniões sobre imigrantes na França, homossexuais e todo o reacionarismo político de que ela é sempre acusada, além de seu alegado fanatismo na defesa da causa animal. 

Não que isso seja de todo mentira (ou de todo verdade), mas este livro de memórias é uma péssima propaganda. 

Para começar, ela não escreve bem. Paragrafação aleatória, uso excessivo de pontos de exclamação (!), enxurrada de advérbios e adjetivos — frases como "foi comovente, extraordinário, único e inesquecível" acabam cansando a leitura, criando uma certa confusão. 

Além disso, ela muitas vezes parece incoerente, quando reclama de algo que depois elogia, ou quando fala que os pais lhe deixaram marcas de um certo abandono afetivo, depois contrariando tudo com exemplos diversos. Quando não é pura e simplesmente hipócrita: reclama da frouxidão de valores e da sexualização dos costumes e a cada página parece ter um homem diferente debaixo dos lençóis; obcecada com animais, reclama de seu abandono e a todo instante vocifera contra a maternidade, confessa seu estranhamento com o filho, não fala dele com grande carinho e depois simplesmente deixa de falar nele, após confessar sem muito remorso seus vários abortos (chegando a desejar e tentar ter abortado seu único filho também) — o filho foi viver com a família do pai. 

Falando em páginas, é realmente difícil acompanhar quase SEISCENTAS páginas (com um livro grande de tamanho, ou seja, virtualmente umas mil páginas "reais"!) com tanta crítica, tanto negativismo, tanta intransigência, carência, raiva, tristeza. Com o pretexto de ser intensa, ela se revela simplesmente desagradável! Parece que reclama por qualquer coisa, zanga-se por nada, quer se matar por picuinhas e leva tudo de maneira extrema. Quando não parece simplesmente fútil, mimada, ridícula. 

O livro é bem desinteressante. Ela só comenta trivialidades, seus amigos próximos, suas desilusões amorosas, sua extrema e por vezes bizarra carência. Tem um estilo repetitivo, como nas inúmeras vezes que cita um acontecimento ou fato e declara: "desde essa época, eu...", "por isso, a partir de então eu nunca mais..."... 

Sobre cinema, a impressão é péssima. Fala marginalmente (quando muito) dos filmes, revelando uma tremenda falta de paixão pelo ofício que exercia, fazendo muitas vezes os filmes de qualquer maneira, amaldiçoando quando aceitou fazê-los. Fala um pouco sobre Clouzot, Godard, Deville, mas sem qualquer competência.

Descobri, no meio da leitura (que me tomou mais de um mês!), que essa é na verdade a PRIMEIRA parte de suas memórias, concluídas depois com um segundo volume. Não sabia disso, e creio que não saiu a tal conclusão no Brasil. Mas acho que não gostaria de ler, de qualquer modo. Iniciais BB cobre todo o período que me interessa na vida dela, do nascimento até sua precoce aposentadoria, aos trinta e oito anos. 

Enfim, livro decepcionante. Melhor mesmo ver os filmes — e não todos, já que essa falta de alegria em submeter-se a atuação é visível em muitos dos medíocres ou ruins trabalhos que ela aceitou fazer "por osmose"... 

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Esqueci de falar de um dos grandes temas do livro: a celebridade. O pavor da Brigitte pelos fotógrafos, jornalistas e repórteres invasores de sua privacidade, e os artifícios, tramoias e guerrilhas praticadas contra sua intimidade. Uma das histórias mais inacreditáveis ela conta no fim do livro: foi visitar uma amiga no hospital, com óculos escuros e xale (para despistar a imprensa, que a seguia sempre em todos os lugares, sem trégua), e no dia seguinte saiu no jornal uma notícia de que ela foi incógnita naquele hospital fazer uma intervenção estética no rosto. Ela ficou fula, se não desmentisse isso nunca a deixariam em paz com essa história, então acionou seu advogado e conseguiu o seguinte acordo: uma comissão de médicos e os advogados dela e do paparazzo verificariam numa cerimônia marcada se ela foi paciente de plástica, analisando, defronte um juiz, suas pálpebras, bochechas, costas das orelhas etc.

A vida absurda sem liberdade é uma coisa tocante, e a histeria mundial sobre ela não difere do que se apresenta com as celebridades de hoje.

P.S.: Fiz por essa época, com informações do livro, um Musas Eternas dedicado à Briggite.

E como um bônus, para lembrarmos de como ela já foi encantadora de verdade, este clipe.