segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Mad about you

Mad about you foi um dos seriados que eu via na adolescência, época em que, apenas com obrigações escolares e bem mais livre na cabeça e no tempo, tive tempo para perder muito tempo com mil coisas que hoje sacrificaria sem nenhum sacrifício.

Uma delas eram os seriados que eu via aos montes, nos canais pagos da Warner e da Sony. Vi várias temporadas de Friends, Just shoot me!, Frasier, Becker, Everybody loves Raymond, Married... with children, Spin city etc. Como deu para perceber, adorava sitcoms, pouco ligava para os dramas ou esse tipo de série mais "interligada" que hoje abunda, com arcos narrativos que tomam muitos episódios e às vezes a série toda — não, o que eu queria era dessas séries "imediatas", que tanto faz como tanto fazia ver episódios pulados, soltos, fora da sequência e o que mais fosse. Mas claro que havia aí um paradoxo involuntário: para que procurar tanta liberdade, se eu religiosamente não perdia um momento dessas séries? Além de tudo elas eram reprisadas à exaustão...

Mas a minha favorita sempre foi Mad about you. Enquanto a maior parte dos seriados eu via como quem assiste a algo dispensável, que pode ser descartado, Mad about you era outra coisa: era importante, necessário, era algo que me dizia respeito, eu me importava com aquilo e com aquelas pessoas.

A razão mais forte para eu gostar tanto dessa sitcom era a mesma que faz com que ainda hoje eu continue apaixonado por ela: Helen Hunt. Ou melhor, Jamie Buchman. O feliz encontro que juntou uma atriz magnífica com sua expressão mais perfeita. Costumo dizer que as melhores atuações que já vi em seriados televisivos são as de Helen Hunt neste Mad about you e a do colossal Peter Falk em Columbo. Jamie Buchman, que já descrevi como "a mulher da minha vida", me atrai por sua incrível sinceridade/naturalidade, uma voz de intensidade e força que faz com que ela pareça sempre possível e encantadora, companheira e cúmplice inteligente, real.

Mad about you centra-se em Jamie e seu marido, Paul, feito por um dos criadores da série, Paul Reiser (o outro criador é Danny Jacobson). Se é verdade que por vezes o texto de Paul parece muito "engraçadinho", quase um deslocado 'stand up', seu jeito descontraído e seu bom timing cômico relevam qualquer problema desse tipo. E não se pode falar mal de quem criou essa série, fez sua música-tema e compôs junto a Helen Hunt o casal mais simpático da televisão.

Paul e Jamie são os únicos personagens que seguem do começo ao fim da sitcom. A melhor amiga de Jamie (Fran), sua irmã (Lisa), os pais de Paul (Sylvia e Burt), seu primo (Ira) e muitos outros dão as caras com maior ou menor frequência, sumindo por uns tempos e reaparecendo em outros. Alguns personagens, como o "andador" de cachorros, a terapeuta do casal, o tio esquisito de Paul (feito por Mel Brooks) ou os pais de Jamie (interpretados por vários atores, com destaque para os míticos Carol Burnett, admirada por Chespirito, e Carroll O'Connor) também aparecem com certa regularidade, apesar de nunca serem exatamente fixos.

Fixos mesmo apenas Paul e Jamie Buchman. E isso é ótimo e muito adequado. Aliás, sinto uma queda na qualidade do seriado quando as histórias "de marido e mulher" se transformam em histórias "de família". Quando resolvem ter um filho, quando de fato nasce uma menina (Mabel, única herdeira dos Buchmans) e a série perde essa gigantesca qualidade da crônica de um jovem casal, ficando um pouco mais convencional, apesar de ainda admirar pela vitalidade dos atores, a direção afinada, o texto com sua graça peculiar e sobretudo ainda por Helen Hunt, que nunca está menos que fascinante em cada um dos 164 episódios.

A série fez sucesso por aqui, era constantemente reprisada e creio que chegou a passar na televisão aberta, evidentemente dublada (o que é um crime). Mas há anos é pouco referenciada, sempre perdendo pela superexposição da muito inferior Friends, que foi inteiramente lançada em DVD e agora sai em blu ray; Mad about you só saiu aqui numa edição especial comentada, com apenas quinze episódios selecionados. E nem nos EUA a série saiu de modo integral, o que é um grande absurdo e menosprezo.

[Falando em Friends, pode-se dizer que Mad about you é um pouco sua sitcom-irmã. Lisa Kudrow tem um papel em ambas; na primeira, é uma das protagonistas; na segunda, que iniciou antes e em que faz apenas participações especiais, é... a irmã gêmea da personagem que faz na primeira! Um detalhe curioso, sendo que há um episódio de Friends em que Jamie e Fran aparecem no café dos amigos e confundem sua conhecida com a irmã dela. Esse tipo de conexão, é verdade, me divertia mais quando eu era mais novo; mas é bacana também para vermos como Mad about you estava no centro do que se fazia de popular nas sitcons da época, tendo também um episódio com a presença de Kramer, o célebre amigo de Jerry Seinfeld em sua autointitulada série.]

Alguns grandes momentos nunca sairão da minha cabeça, como o episódio em tempo real e só um take, em que Paul e Jamie sentam do lado de fora do quarto de sua filha, esperando a bebê pegar no sono; uma festa em que eles se dividem e cada um vive suas cenas independentemente do outro mas com ação simultânea e uma bela distorção do tempo e espaço; as participações de gente como Jerry Lewis, Nathan Lane, John Astin e Steve Buscemi; e, claro, o casal se conhecendo, Paul tomando a iniciativa, Jamie o levando para a festa da empresa. Coloco aí embaixo esse belíssimo encontro, de uma honestidade sentimental fabulosa, junto a uma das aberturas (algumas fotos e nomes de elenco iam sendo substituídos) e a cena final exibida em 1999. Após sete anos e um merecidíssimo Oscar no meio do caminho para Helen Hunt, a série se encerrava da maneira mais tocante possível, num episódio duplo dirigido pela própria intérprete de Jamie. Fechando assim uma pequena joia romântica que envelhece muito bem e continua sendo uma grande inspiração para mim.

domingo, 28 de outubro de 2012

Grandes animadores: Winsor McCay

 A "paternidade" da animação cinematográfica é normalmente creditada ao mítico Émile Cohl. Mas foi talvez Winsor McCay que, nos primórdios dessa arte, conseguiu desenvolvê-la ao ponto de criar inconsciente e involuntariamente inúmeras escolas que o seguiram e o seguem ainda hoje. Um dos prêmios mais famosos dados aos animadores (inclusive a Andreas Deja), o Winsor McCay award é um justo reconhecimento a um brilhante artista que não só foi um desbravador de caminhos, um pioneiro, mas um entusiasta inigualável, um daqueles visionários que tanto labutam em sua área de atuação que criam um padrão de excelência.

Winsor McCay é também célebre por ser o autor do seminal quadrinho Little Nemo in Slumberland. Um dos personagens mais influentes da arte sequencial, o menininho que ao adormecer adentra terras mágicas e surreais continua sendo uma quintessência da beleza gráfica narrativa, influência e inspiração de autores tão diferentes e tão geniais como Robert Crumb e Moebius. Na Itália há um selo editorial chamado Little Nemo, dedicado a obras sobre quadrinhos. No dia 15 deste outubro todo o mundo pôde ver a homenagem que o Google fez aos 107 anos desse espantoso ícone cultural. Até mesmo aqui no blog ele já havia sido citado!

No campo da animação, Winsor McCay não é menos influente, e seus curtos filmes impressionam pelo vigor do traço, a força do movimento definido, a beleza da composição. Dinossauros, aborígenes, até mesmo seu pequeno sonhador dão as caras no meio da fantasia de seu artista, que inclusive aparece em seu mais clássico momento apresentando a uma plateia de céticos seu maravilhoso engenho em fazer imagens se moverem!

O cinema de Winsor McCay é curto mas extremamente profundo. Mike Leigh colocou em seu top 10 filmes o curta How a mosquito operates, de apenas cinco minutos. A duração não importa muito: em minutos McCay podia criar mundos que cineastas e animadores menos capazes só conseguiam reproduzir, parcialmente, em épicos de muitas e aborrecidíssimas horas. Como se pode observar na pequena amostra de sua magnífica imaginação, a seguir:

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Os quatro romances de Lygia Fagundes Telles

Em 2008 li Ciranda de pedra e fiquei muito impressionado. Aos poucos fui lendo outros livros de Lygia Fagundes Telles, e verdade que se poucos me impressionaram tanto quanto o primeiro (meu outro favorito dela é um de contos, Seminário dos ratos), foi muito bom ir aos poucos lendo o resto de sua obra e acompanhar paulatinamente sua evolução de temas, personagens e estilos. Terminei ontem seu último romance, As horas nuas, lendo cada um deles na ordem em que foram escritos/publicados. Eu vejo uma nítida gradação de alguns temas, e mesmo a meu ver suas personagens vão envelhecendo junto com ela. Comentando brevemente cada um dos livros:

Ciranda de pedra (a infância): concentra-se em Virgínia, jovem que se vê às voltas com as diferenças entre o que esperam/querem dela e as percepções que possui do mundo e da vida. Com uma narração extremamente delicada e sugestiva, acompanhamos o crescendo do inconformismo da moça e suas relações problemáticas com as irmãs (Bruna e Otávia), sua paixão (o indeciso Conrado) e os adultos que vagueiam ao redor dela um pouco como espectros, sem adentrar seu mundo e sem procurar compreendê-la. Aparecem na trama assuntos polêmicos como eutanásia, loucura, suicídio, lesbianismo, incompatibilidade familiar. O livro foi bem recebido e colocou a autora, que havia publicado livros de contos com relativa repercussão, em destaque na nova literatura contemporânea brasileira. Foi adaptado duas vezes para novelas televisivas, que, não sabendo lidar com o material "controverso" do romance, pasteurizaram o livro até as raias do inócuo e insosso. Virgínia é uma personagem solitária, que precisa encontrar em si mesma, sem qualquer ajuda exterior, a força para seguir adiante mesmo com suas dúvidas e temores, em meio a grotescos cotidianos. Considero um pouco um "romance casulo", e Virgínia passará de lagarta a borboleta até o final da narrativa. Publicado em 1954.

Verão no aquário (a adolescência): Raíza é a jovem da vez. Menos reprimida que Virgínia, a jovem desfila de calcinha pela casa e se interessa por um homem mais velho, entrando em uma disputa "fria" com a própria mãe, que evidentemente não a entende. O confronto entre a imaturidade da juventude e a experiência grave e culpada de uma figura mais velha autoritária (mesmo que involuntariamente) é um dos principais elos entre todos os quatro romances; mas aqui se começa a discutir problemas psicológicos mais graves, e também as drogas vão se insinuando, o sexo como forma de punição passa a co-existir com certo desprezo pelas pessoas (notadamente por Marfa, desagradável presença)  — uma vaga misantropia que passa a ser mais acentuada pela mudança estilística que faz Raíza, diferentemente de Virgínia, exprimir-se em primeira pessoa. A jovem parece serenar um pouco próximo ao fim do romance — um pouco o caminho contrário seguido pelo Eduardo Marciano de O encontro marcado, de Fernando Sabino, que possui muitas semelhanças com a moça —, quando ocorre um acontecimento que pode ser definido como o clímax do relato, divisor de águas na personalidade de Raíza. Publicado em 1963.

As meninas (a mocidade): talvez o romance mais ambicioso de Lygia Fagundes Telles, com uma profusão de temas e pontos de vista, pois desta feita temos três narradoras - Lia, a "guerrilheira", Ana Clara, a perdida nas drogas, e Lorena, a burguesa em crise. O livro é intercalado pelas diferentes vozes narrativas, com diversas pontuações, vocabulários e mentalidades. Possivelmente a narração mais bela seja a de Ana Clara, totalmente despida de vírgulas, num torpor visceral que é quase como uma confissão ao leitor. Mas a personagem mais "positiva" é Lorena, que talvez seja a única das três meninas que afinal pode se salvar ainda. Nesta história vemos relatos intensos sobre a ditadura militar brasileira e seus métodos de tortura, o reacionarismo social e a decadência de valores da classe média. É o livro mais famoso e aclamado da escritora, ganhador de vários prêmios e inclusive adaptado para o cinema. Escrito durante os anos mais repressores do regime militar, demonstrando uma inquietação algo corajosa e uma proposta política de conscientização até então sublimada em sua ficção, além de potencializar o drama e o contexto por que passam as personagens ao longo do livro. Publicado em 1973.

As horas nuas (a maturidade): o romance com mais perspectivas, e pela primeira vez algumas masculinas. Pode-se centrar o discurso em dois núcleos: Rosa Ambrósio, os três amores da atriz decadente e alcoólatra, e seu gato Rahul, visionário de vidas passadas e crítico da civilização; e Ananta, a introspectiva psicóloga/terapeuta de Rosa Ambrósio, e seu primo Renato. O discurso alterna-se entre direto e indireto livre, causando por vezes estranhamento pelo ritmo irregular. É o romance menos convencional da autora, e ao final praticamente nenhuma intriga ou conflito é resolvido, mesmo após uma guinada que praticamente muda o gênero de ação e propõe um novo problema (com uma substituição de personagens bastante curiosa); é como se a narrativa apenas se houvesse ocupado de breves instantes retirados de suas vidas, como fotografias retratando momentos aleatórios de existências que nunca chegamos a compreender realmente. Também é seu romance mais parecido com seus contos, adotando em certas passagens elementos do sobrenatural, do hermético emocional e de um jogo de espelhos intrincado e sem solução. Publicado em 1989.

Lygia, aos 89 anos, fica nos devendo um romance sobre a velhice (a velhice temida por Rosa Ambrósio e sequer cogitada por Virgínia). O principal problema que vejo em seus romances é o acúmulo de interjeições/imprecações que se repetem, como chavões ("compreende?", "pombas", "ô! meu pai"), e tornam de alguma maneira aquelas personagens mais estereotipadas e menos críveis. Ciranda de pedra não possui esse recurso, e também é o único de seus romances narrado exclusivamente em terceira pessoa (onisciente). Talvez por isso, ou por eu gostar muito de histórias sobre a juventude, seja meu favorito — mas também acho que por Virgínia me lembrar um pouco a Suzanne de À nos amours, um dos meus filmes favoritos e retrato perfeito das perturbações que separam a vida infantil da adulta.

O quinto romance de Lygia Fagundes Telles, sempre prometido e anunciado mas nunca parido, ainda está por nascer.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Mister No

 Mister No é uma série criada por Sergio "Guido Nolitta" Bonelli em 1975 e encerrada em finais dos anos 2000 (pouco antes de seu autor, o legendário editor/roteirista, morrer, em 2011).

As particularidades da série são muitas, e seu principal atrativo é o anti-herói que lhe dá nome: Mister No, aliás Jerry Drake, piloto americano que lutou na Segunda Guerra Mundial e na Guerra da Coreia. Mas Mister No não é uma aventura de guerra, ou não exatamente. O próprio pseudônimo do protagonista já dá o tom do inconformismo: o "no" é devido a sua negação, sua recusa em querer tirar as vidas dos outros, em combater em nomes de ideais espúrios, em entrar em batalhas inúteis e sangrentas. Fugindo da violência, Jerry Drake resolve se estabelecer numa terra quente e afetuosa: o Brasil!

Sim, o Brasil amazônico, que Sergio Bonelli tanto amava e conhecia, é o cenário da maior parte das aventuras do piloto de cabelos desgrenhados e que começam, pela base, a ficar grisalhos. O curioso (e triste) é que aqui no Brasil, onde as editoras Record e Mythos publicaram algumas poucas dezenas de aventuras suas, ele nunca foi muito popular. Suas histórias na Amazônia, no Pantanal e em outros lugares de nossa geografia próxima não chegaram a emocionar um contingente de leitores necessário para que suas aventuras prosseguissem em nossas bancas.

Fato lamentabilíssimo, e bastante incompreensível — Mister No possui todos os ingredientes para agradar a muita gente: tensão, aventura, romance, muito humor e um personagem incrivelmente simpático: Mister No é alguém que foge da brutalidade e dos horrores que experimentou ao tirar a vida de pessoas, mas sempre é tragado para conflitos que o fazem relembrar e revisitar essas torturas. Mas ao contrário do que possa parecer, a série idealizada e roteirizada (por muitos anos) por Guido Nolitta não é essencialmente ácida ou denunciatória, mas humana. São reflexões sobre nossa humanidade, nosso espírito de solidariedade, o apelo que a ecologia, a alegria e a fraternidade possuem sobre nós.

Ao longo dos anos, Mister No apresentou uma invejável variedade de estilos de desenho e desenvolvimento narrativo, por gente como Claudio Nizzi, Fabio Civitelli, Franco Bignotti, Gallieno Ferri (o genial capista e desenhista-mor de Zagor, que foi o criador gráfico deste nosso belo piloto), Alfredo Castelli, Tiziano Sclavi e até mesmo o mítico brasileiro Eugênio Colonnese (único brasileiro que já trabalhou para a Bonelli); mas de todos esses grandes artistas, os dois maiores artífices da personalidade e do acabamento da série foram mesmo seu criador, o magnífico Nolitta, e um desenhista que aos poucos foi tomando conta do personagem até defini-lo a sua imagem e com uma força expressiva assombrosa: Roberto Diso. Foi Diso quem mudou a imagem que Ferri havia criado para Mister No, atualizando seus trajes (ele usava uma jaqueta e um lenço amarelo no pescoço), bagunçando seu até então arrumadinho cabelo e dotando-o dessa malícia engraçada que o faz ser marcante em cenas como as das frequentes bebedeiras (por desilusão ou por hábito) e aquelas em que se envolve, mulherengo, com belíssimas moças — entre as quais se destaca sua frequente amiga e paixão disfarçada Patricia Rowland, arqueóloga voluntariosa e decidida. No maior fórum bonelliano brasileiro, é possível ver algumas belas ilustrações de Diso e outros artistas.

Mister No é um sujeito expansivo, que vive afastado da "civilização" na Manaus de décadas atrás — que ainda começava a se desenvolver no que chamamos de "progresso" — e só quer ser deixado em paz e viver de pequenos expedientes e voos turísticos, levando passageiros em seu velho e (pouco) confiável piper. Seu grande amigo é, podemos dizer, o ex-combatente alemão Esse-Esse, ou melhor, Otto Krueger, simpático chucrute que também se cansou de ceifar vidas em nome de ideais políticos questionáveis. Há nas páginas de Mister No pensamentos tristes sobre o futuro das nações e do desenvolvimentismo bélico, mas também há espaço para a beleza natural, com paisagens e animais que hoje nos parecem distantes porque em vias de extinção, e também encontramos nas histórias muitas razões para acreditar nas pessoas que querem fazer a diferença e dar sua contribuição a um mundo mais sereno e mais amigo.

Por tudo isso e por muito mais, Mister No é um quadrinho que marcou a minha vida e me acompanha sempre, e que desejo muito que possa voltar algum dia a ser publicado na "terra adotiva" de Jerry Drake/Sergio Bonelli, conseguindo enfim todo o sucesso que merece e que nunca lhe deveria ser negado.

Oh, when the saints go marchin' in...

Bônus: Roberto Diso desenhando, a meu pedido, Mister No e Patricia. Pude encontrar o grande artista na última edição do Fest Comix de São Paulo, há dois dias.

 


Atualização (23/10/12): No Blog do Zagor comento sobre meu encontro com outra personalidade bonelliana que apareceu no Fest Comix - Moreno Burattini. 

Atualização 2 (24/10/12): No Blog do Tex, meu terceiro e último (re)encontro bonelliano do Fest Comix - Fabio Civitelli.

domingo, 21 de outubro de 2012

Vidas secas

Prosseguindo com os resgates de escritos meus, algumas breves impressões sobre o maravilhoso romance/novela Vidas secas logo após eu tê-lo lido, escritas em 17 de abril deste ano:

Vidas secas - Graciliano Ramos

Um petardo.

Primeiro que é gostosíssimo de ler. Admirei-me de o discurso indireto ser tão próximo de Erico Verissimo (ou vice-versa), muito simples e incisivo psicologicamente, quando esperava encontrar quase um tratado sociológico e político sobre as secas e os retirantes, a situação crítica do sertão e das famílias sertanejas.

É uma história totalmente humana, de grande carga emocional, figuras perfeitamente profundas e tocantes. Difícil não se solidarizar com a nobreza das personagens.

Mas o capítulo mais doloroso é aquele dedicado a Baleia. Não sei se por ela ser humanizada, mas a descrição de seu ocaso é tão maravilhosamente construída e tão incrivelmente dramática que me causou quase mal estar ao ler, é muito, muito, muito triste. Como seus sentimentos são abordados, como ela entende sua nova "condição", como as pessoas envolvidas no caso reagem.

O resto do romance é surpreendentemente esperançoso, apesar da melancolia a cada nova provação do destino, a cada nova desgraça advinda de uma condição social um pouco irreversível. Mas seguimos torcendo e acreditando que no futuro aquelas gentes conseguirão um pouco de dignidade, pois são fortes e demonstram grande força de espírito para sobreviver e vencer, apesar de o sistema em que estão inseridas ser plenamente contra seu progresso e evolução.


Obs.: Escaneei a capa da edição que possuo, não a encontrei na internet (pelo menos não com uma qualidade satisfatória). Não é a capa mais bonita que esse livro já possuiu em sua longa trajetória editorial, mas espero com isso contribuir minimamente para os esforços de homenagem aos 120 anos de Graciliano Ramos, completados daqui a seis dias.

sábado, 20 de outubro de 2012

Boule e Bill

Boule e Bill é mais uma série franco-belga de sucesso que demorou para chegar aqui.

Na verdade, eles já haviam aparecido há vários anos no Brasil. Mas não se firmaram, e voltaram ao obscurantismo.

Há poucos meses, a situação mandou. A jovem e empolgada editora Nemo, que está lançando ou relançando em edições excelentes obras ausentes há anos de nossas livrarias (como trabalhos de Moebius e de Bilal), resolveu apostar nesse simpático título infantil. O primeiro volume, que na verdade foi o último lançado lá fora, chamou-se aqui Ao ataque!. Trata-se de um álbum bonito, no formato tradicional europeu (o mesmo de Asterix), mesmo número de páginas, mas com um preço acessível, bem abaixo do que se costuma cobrar por esses produtos. O álbum foi lançado com boa publicidade, aparecendo bastante na imprensa, e teve destaque no estande da editora na Bienal do Livro realizada em São Paulo este ano; inclusive era oferecido às pessoas um pôster de divulgação, com duas páginas de "amostra" e uma linda ilustração de Boule (o menino) e Bill (seu cachorro).

Agora em São Paulo está havendo a famosa feira de quadrinhos Fest Comix, e a Nemo não perdeu a oportunidade: lançou mais um álbum, Semente de Cocker. Com o mesmo capricho, o mesmo acabamento, o mesmo preço em conta. O papel é bom, a impressão é ótima, é um produto irretocável. Parece cedo para afirmar que o segundo álbum foi lançado na onda do sucesso do primeiro: pelo intervalo curto de tempo entre eles, talvez seja mais acertado apostar que os dois álbuns são testes de mercado. O esforço da Nemo é louvável e merece ser reconhecido.

Boule e Bill é um dos inúmeros quadrinhos cartunescos que a França e a Bélgica apresentam em profusão mas que aqui no Brasil são ridiculamente ignorados. Se Asterix e Tintin continuam sendo dois dos quadrinhos estrangeiros mais vendidos e populares por aqui, por que não apostar em outras séries na mesma linha? Assim como Boule e Bill, inúmeros outros personagens fazem sucesso lá fora e só agora andam aparecendo por aqui, lançado por editoras pequenas e/ou independentes, como a Nemo, que está começando, e a Vergara & Riba, que lançou intrepidamente os dois primeiros volumes de Titeuf — simplesmente o personagem mais vendido na França, e que aqui é/era totalmente desconhecido e ignorado. Essa lógica de só lançar material "indie" americano, praticada por editoras como a Companhia das Letras, é incompreensível. Evidentemente Daniel Clowes e amigos merecem seu espaço aqui, mas por que essa resistência absurda a títulos franco-belgas?

Boule e Bill é encantador. O que mais me chama a atenção são os desenhos, simplesmente lindíssimos. O contorno, as sombras, as proporções, os movimentos, os gestos e as cores, tudo de embasbacar. A série foi criada em 1959 por Jean Roba (falecido em 2006), e atualmente é continuada por seu assistente Laurent Verront. Cada página do álbum possui uma gag, e em cada uma delas conhecemos um pouco dos dois protagonistas, dos pais de Boule, da tartaruga Caroline (apaixonada por Bill) e de outros vultos divertidos e simpáticos. É uma série engraçada e alegre, ideal para crianças mas não só. Fica a torcida para que a Nemo consiga seguir adiante com esses lançamentos incríveis, e que o mercado/leitor brasileiro se abra para sair da mesmice a que está acostumado.

P.S.: A popularidade de Boule e Bill é tão incontestável que está sendo feito um filme live action inspirado nos quadrinhos, segundo consta. A estrear ano que vem.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Di Melo

Uma coisa que sempre me chama a atenção são os "artistas de obra única". Não me refiro àqueles cineastas que escreveram só um livro, ou à atriz que começou este ano e só fez um filme. Mas àquele pessoal que por alguma razão só produziu um trabalho em uma área e mesmo assim esse trabalho é tão bom e relevante que o artista é associado a esse campo mesmo sem ter feito mais nada ligado a isso. Eu penso em Harper Lee, que só escreveu um romance, em Baby Huey, que só lançou um álbum. E em Di Melo.

Trata-se de um caso extremamente curioso. Seu único disco foi lançado em 1975, produzido por Hermeto Pascoal. Di Melo não morreu jovem, pelo contrário, está ainda por aí em aparições esporádicas — quando nasceu? Quantos anos tem? —, as razões para esse álbum ser seu único trabalho lançado permanecem, até onde se sabe, desconhecidas. Foi feito um documentário sobre sua trajetória de vida/carreira, intitulado Di Melo - O imorrível. Mas até o filme é misterioso, inencontrável!

O disco, autointitulado, é uma maravilha. Oscila por mil gêneros, sonoridades, tendências, indo do rock progressivo ao tango, passando por bolero, seresta, soul, funk, samba, choro, ritmos latinos, coisas sui generis, tudo combinado, mexido, misturado, integrado. Não dá para definir bem, só se pode afirmar que é de uma originalidade e uma potência comoventes, o que só aumenta as dúvidas: por que só esse disco?

O problema não pode ter sido o "fracasso". É um álbum bem gostoso de ouvir, diria quase easy going, que, mesmo que não fizesse sucesso logo de primeira poderia fácil engatar uma carreira ascendente nas rádios, televisões e afins. Ademais, é difícil um artista esperar um estouro logo de cara. Não pode ter sido também a falta de material para outros lançamentos; segundo consta, Di Melo tem dezenas, centenas de músicas engavetadas.

Então poderíamos pensar no desconhecimento do artista. Mas alguns estrangeiros já se interessam pela música de Di Melo há vários anos, e aqui no Brasil Charles Gavin chegou a relançar seu disco por um selo comemorativo da Odeon. Ele não é exatamente a pessoa mais obscura e misantropa do mundo. Aliás, ele ocasionalmente faz shows! Há na internet vários registros dessas apresentações recentes.

O mistério Di Melo continua? Sim, ainda que um pouco diluído por iniciativas de resgate como a do documentário e a do site El Cabong, que fez uma das entrevistas mais reveladoras de certos bastidores da confecção desse trabalho incrível que veio à luz no meio da década de setenta. Quer dizer, aos poucos Di Melo deixa de ser lenda e vira homem, as coisas se encaixando, a biografia se completando. Mas e daí? A música dele é o que importa, e nisso ele é enorme sempre. Um único álbum, irretocável. O disco hoje é disputado a tapa em sites de leilões/especuladores virtuais, mas ainda bem que a internet deixa tudo isso ao alcance das pessoas. Então seguem algumas músicas para quem não conhece ou para quem sempre tem vontade de ouvi-las de novo e de novo e de novo novamente:

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Andrício de Souza

O único lugar em que estudei a educação "oficial" (portanto, sem contar os cursos de língua e afins) por que sinto afeto é a escola onde fiquei desde o pré até o fim da oitava (hoje nona) série. Nesse colégio gostava de tudo, vivia tranquilo e satisfeito, lia muito, meu rendimento era bom e eu tinha vários bons amigos.

Claro que perdi esses amigos de vista, ou pelo menos a maior parte. Mas aí de repente acontecem com a gente essas coincidências de trajeto, e esbarrei numa rede social com um velho amigo: o André. Era um bom camarada, com que conversava bastante andando pelos pátios do colégio que hoje estão sendo destruídos/reformulados. Portanto, um amigo de lembrança. De coisas que não existem mais.

Mas o que acontece é que o André também não existe mais! Ele se sublimou atrás de um heterônimo: o Andrício. Andrício é esse cara que parece que a gente já conhece mas na verdade é alguém que a gente nunca viu. Como ele diz, faz tirinhas caseiras, quentinhas; digamos que é quase uma obra de artesanato, e claro que na era do império dos memes/menes — e humor "de Paint" no geral, com figuras repetidas à exaustão — isso é a se reparar. Seus personagens são desenhados sob perspectivas bem interessantes: os movimentos dos corpos, o posicionamento dos ângulos de inclinação, ele se expressa de uma maneira única e eficaz.

Também é a se reparar como o humor do Andrício é peculiar. Ele foge de alguns esquematismos que fazem a delícia dos acomodados tiristas contemporâneos: não explora os fáceis "vícios" políticos, não se rende ao direitismo barroco que faz da classe média uma caricatura grotesca, não zomba de quem já é segregado ou perseguido socialmente. Pelo contrário, ele ri desses clichês, desmonta o aspecto diabólico das celebridades pernósticas (como Luciano Huck) e ainda coloca o Paulo César Pereio como seu muso e alter ego ocasional.

Pereio, por sinal, compareceu ao lançamento de seu melhor e único livro, "As 100 primeiras e melhores tirinhas de Andrício de Souza". Eu também estava lá, com toda a ausência de traquejo que me caracteriza (eu acredito que cheguei constrangedoramente a chamá-lo de "Fabrício" em algum momento). Reencontrar um amigo por quem temos estima já é ótimo, mas vê-lo aos poucos crescendo e triunfando numa área que você adora (quadrinhos/tiras) é uma sensação bem curiosa e que afinal serve um pouco de incentivo: as coisas estão acontecendo, você também tem alguma chance de dar certo.

O site do Andrício é este (a apresentação, aliás, foi feita por mim, a convite dele). Vale a pena espiar e conferir um dos tiristas mais originais surgidos pelos últimos anos internet afora. Que não é surpresa para quem frequenta os Facebooks da vida: todo mundo já compartilhou uma tira do rapaz, porque é mesmo muito fácil sentir-se representado em algum momento por ele.

sábado, 13 de outubro de 2012

Notre-Dame de Paris

Continuando com meus resgates, eis o que escrevi sobre Notre-Dame de Paris no dia 15 de fevereiro. Há poucos minutos escaneei a capa do livro que postarei aqui, nunca a encontrei na internet. Essa capa me impressionou muito desde criança, por sua atmosfera sombria e trágica, a resignação da jovem sacrificada e a imobilidade grave das pessoas que a observam, julgam e acusam. Uma ilustração de tremenda força, que deixou uma viva marca na minha memória durante mais da metade da minha vida.

Notre-Dame de Paris - Victor Hugo 
 
Pendência antiquíssima, já que desde garoto eu fiquei apaixonado pelo longa animado da Disney e queria muito ler o livro. Cheguei inclusive a comprar, lá por 96, o traduzido integral (aqui em casa tem o integral em francês, que foi o que li agora); mas a dificuldade do livro me assustava bastante, e só agora resolvi vencer essa tarefa.

De fato, livro dificílimo. Em termos de vocabulário, sem dúvida alguma o livro mais difícil que li em francês. Além disso, é extremamente extenso: centenas e centenas de páginas, com letra minúscula, descrição minuciosa etc.

E o Hugo "não ajuda": há capítulos incrivelmente longos sobre arquitetura, procedimentos burocráticos da legislação da realeza, além de um latinório sem fim (e sem tradução). Nesses pontos, é uma leitura BASTANTE cansativa, algo desanimadora. Sem contar as "armadilhas" pelo meio do caminho: as cem primeiras páginas, por exemplo, são protagonizadas por Pierre Gringoire, dando a impressão de que era o protagonista do livro; no restante do romance, entretanto, Gringoire mal aparece, relegado a uma "coadjuvância" bastante peculiar (todavia, importante).

Mas no mais é uma beleza de romance! Eu adorei conhecer como são "de verdade" personagens que sempre povoaram minha cabeça. E eles são muito complexos e diferentes do que eu estava habituado: a Esmeralda é ingênua, um tanto fútil; Phoebus é um conquistador inconsequente e sem escrúpulos; Quasímodo é introspectivo e violento, forte, perturbado.

E chegamos ao grande personagem do relato: Claude Frollo, o arcediago (no filme da Disney ele é uma espécie de juiz eclesiástico). Desde já um dos personagens mais incríveis com que me deparei na literatura. O capítulo em que se declara à adolescente é de chorar de tão bem escrito e intenso. Um homem de psicologia fascinante, e Hugo descreve sua cabeça e seus sentimentos e ações com TANTO brilhantismo que para mim é como se ele fosse o herói da história.

Uma saga de amores impossíveis, obsessão e desencontros. Belíssimo livro.

sábado, 6 de outubro de 2012

O prisioneiro

Pouco tempo antes de ver O prisioneiro, li "O castelo", de Franz Kafka. E não sei se foi uma estranha coincidência que me levou a logo em seguida ver a série, ou se todas as conexões que vejo entre as duas obras são fruto de uma percepção peculiar (e talvez equívoca) minha, como quando acabei "Don Quijote" e passei a acreditar que talvez a maior parte das narrativas dos últimos quatro séculos bebem com avidez dessa fonte inesgotável que é a obra-prima de Cervantes (o que continuo achando, por sinal).

O fato é que, assim como "O castelo", a série criada, protagonizada e em boa parte escrita e dirigida por Patrick McGoohan é também uma visão de certo modo lógica sobre absurdos institucionais. E tanto K. (protagonista do romance) quanto o Número 6 (protagonista da série) são elementos que se veem imersos num sistema que primeiro parece desprezá-los, depois talvez estranhamente necessite deles; e eles, desiludidos e nervosos, procuram sair do sufocamento, minando as estruturas daquela sociedade. Daí as duas obras possuírem o surrealismo quase na mesma medida, habitado por personagens estranhos e que por vezes parecem incompreensíveis — afinal, em que mundo se passa esses contos?

Chamo de série, mas na verdade "O prisioneiro" é uma minissérie, com apenas dezessete episódios. A sua vida curta televisiva foi talvez uma resposta a certa complexidade ainda então inaudita nesse tipo de mídia. Apesar de hoje ser bastante cultuada, a minissérie continua desagradando aos fanáticos pelas "explicações plausíveis", que teimam em procurar amparo material para a construção de alegorias e metáforas.

A chave para tudo é entender a coisa na sua própria lógica, como o deveria ser para qualquer narrativa ficcional. Então basta que se saiba o seguinte: um homem, com um trabalho específico, demite-se; contra sua vontade, é transportado a uma comunidade isolada no tempo e no espaço, chamada simplesmente de "village" (vila). O tal homem recebe a classificação de Número 6, e a todo instante é inquerido sobre as razões de sua demissão. Por meio de trapaças, sedução (by hook or by crook) e todo tipo de tortura, tentam obter os tais motivos, ou isso alegam. A minissérie descreve a vida do Número 6 na sua busca primária: descobrir quem é o topo daquela cadeia, o elo que tudo liga e coordena, o ápice daquela organização: o Número 1 (no romance de Kafka, o Número 1 é evidentemente Klamm, o oficial inalcançável). Parece uma tarefa inviável: o subalterno mais imediato a ele (o Número 2) a todo instante é trocado, demonstrando como até mesmo a segunda pessoa "em importância" naquele sistema é facilmente substituída. Quem é o Número 1?

A minissérie é um microcosmos de soluções a esse enigma. Experimentando ambientações, estruturas narrativas e desenvolvendo episódios que parecem não servir a propósito algum (parecem, apenas), os dezessete capítulos permitem uma análise bastante intensa das inquietações das personagens, sendo ainda uma descrição impressionantemente viva de estados mentais e comentários ácidos sobre política, liberdade, psicologia. É difícil classificar esse experimento, mas, retomando minha imaginosa associação de há pouco, diria que superficialmente pode-se dizer que "O prisioneiro" é a mais fiel adaptação de Kafka já feita, mesmo sem adaptar diretamente nenhum texto de Kafka.

Talvez a melhor abertura/introdução de uma série de televisão:

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Peanuts

Peanuts completa hoje sessenta e dois anos, oficialmente. Isso significa que a primeira tira com Charlie Brown e seus amigos saiu em 2 de outubro de 1950.

É difícil eu precisar o quanto Peanuts me influenciou, o quanto me assombra ou simplesmente o quanto gosto dessa tira. Por ser a tira mais longeva que acompanho com interesse e fidelidade, seus personagens e situações todos acabam fazendo parte do meu cotidiano e da minha cabeça. Para comparar: Calvin & Hobbes, a tira mais importante da minha vida, durou cerca de dez anos. Peanuts alcançou as cinco décadas! Schulz, seu autor, quase literalmente morreu fazendo-a; a última página dominical, sua despedida, foi publicada após a sua morte.

Peanuts tem um traço simples, quase não possui cenários de fundo, as personagens são anatomicamente incorretas e cabeçudas, com mãozinhas e pernas/pés muito estilizados etc. So what? Peanuts tem uma expressividade colossal, dificilmente igualada. As crianças (pois é uma tira em que apenas elas aparecem, com uma pequena exceção no começo da "saga") são muito reais, movimentam-se com naturalidade impressionante, nunca parecem falsas, ridículas, unidimensionais. Não apenas fisicamente: os caracteres que Schulz desenvolve são tremendamente complexos e verdadeiros, honestos, tocantes. Há todas as fobias, medos e alegrias da infância e da vida, a cada quadro parecemos conhecer um pouco mais não apenas daquela turma mas das nossas vidas. Não é um clichê ou um elogio superlativo; quem ler Peanuts entenderá perfeitamente.

Além de tudo, um dos grandes méritos de Peanuts é para mim a admirabilíssima habilidade de reinvenção que Schulz possuía. Muitos arcos narrativos são recorrentes ao longo das décadas da tira — exemplos: Linus e "The Great Pumpkin", o Ás da Aviação da I Guerra Mundial versus o Barão Vermelho, o aniversário de Ludwig van Beethoven, a avó de Linus versus seu cobertor e, claro, Lucy tirando a bola na hora de Charlie Brown chutá-la —, mas isso nunca parece repetitivo ou desnecessário; Schulz explora um tipo de "padrão" que dificilmente se vê em quadrinhos, para mim algo essencialmente musical: variações! Ele pega um tema, um assunto, uma distinção da personagem, e trabalha a ideia à exaustão, com todas as suas possibilidades. E como ele é feliz nisso!

Também é completamente louvável o empenho, a dedicação à tira, à arte, àqueles personagens. Ora, Schulz alcançou o sucesso e a fama muito cedo. Ao contrário do aparentemente misantropo Bill Watterson, ele nunca pensou em realmente encerrar a série de quadrinhos. E diferentemente de mil outros quadrinistas, ele não relegou sua obra a aprendizes incapazes ou explorou-a de tal maneira que já não podia mais ser livre ou sincero no que produzia. Não, Charles Schulz resistiu a todas essas tendências e fez, dia após dia, incansável, centrado, cada uma das 17.897 tiras de Peanuts. Era uma simbiose, um projeto de vida. Derramando-se em cada quadro, evoluindo junto com seus leitores (e além), na imaginação peculiar de Snoopy, no feminismo egoísta de Lucy, na alegria marginal de Peppermint Patty, na estrondosa percepção humana de todas as suas criaturas, enfim, Schulz foi um grande homem que legou à cultura um monumento que não pode jamais ser contestado: a vida, nada mais e nada menos que a vida.

(Um singelo agradecimento pelos sessenta e dois magníficos anos de Peanuts).

Bônus: há muitos vídeos sobre Schulz e Peanuts disponíveis na internet. Aqui vão alguns, apenas como mostruário: vale a pena ver o máximo que der.