quarta-feira, 17 de abril de 2013

Don Quijote de la Mancha

Breves impressões do magnífico Don Quijote de Cervantes, escritas respectivamente em 2 de fevereiro, 10 e 26 de abril de 2011, quando pude ler finalmente esse livro colossal:

Há cerca de três semanas resolvi perder um medo antigo e ler de uma vez por todas o Don Quijote (ou Dom Quixote) de Cervantes. O livro sempre me pareceu ser ótimo, todos comentam maravilhas dele e é considerado por todo mundo uma das melhores ficções já escritas; mas minha preguiça se devia a um problema antigo meu: sou MUITO lerdo para ler. O Quijote tem mais de um milhar de páginas, e isso me parecia muito desanimador. Mas aí tomei como resolução para o ano novo ler algumas pendências antigas acumuladas há anos. A edição do Quijote que estou lendo, a ganhei do meu pai em 2007. E vou falar: que livro MARAVILHOSO! Em todos os sentidos.

Primeiramente eu vou destacar a beleza do livro da Alfaguara, a edição em homenagem ao quatrocentenário da primeira parte do livro; além de um acabamento editorial perfeito, a edição tem mil apêndices, as portadas originais, explicações detalhadas sobre os arcaísmos da obra, um glossário extremamente completo e útil, mais o texto integral em espanhol com apontamentos que esclarecem, solidificam o entendimento e aguçam a curiosidade, aumentam a vontade de contextualizar o processo de escrita de Cervantes, suas fontes, influências, deixam claro as piadinhas de gramática, os erros (deliberados ou não) cometidos pelas personagens, as sutilezas empregadas na construção das frases, e tudo isso sem parecer intelectualóide, pedante, acadêmico (naqueles sentidos ruins), dando novos sentidos à compreensão do texto, auxiliando na busca por uma experiência completa de leitura. Vou dar um exemplo: no começo da obra, Cervantes descreve com muito detalhamento as roupas e modo de vida do nosso célebre fidalgo, e é preciso peneirar essas citações para entender como era absurdo para alguém JÁ NAQUELA ÉPOCA se deparar com o projeto de cavaleiro que era Don Quijote, que já usava roupas foras de época mesmo naquele início do século XVII, que tinha costumes assombrosos que já eram desconhecidos daquela geração etc.; sem essa ajuda, o leitor não se daria conta do IMENSO estranhamento das personagens ao encontrarem o fidalgo, e por que ele parecia sempre tão absurdamente deslocado e ultrapassado e ridículo.

Comecei falando da edição e já pulei para a história, não tem jeito; ela é tão lindamente narrada que eu, na minha proverbial vagareza, já devorei quase trezentas páginas e estou entrando na quarta e última parte do primeiro livro. Don Quijote e Sancho Panza são duas criações magníficas, donos de idiossincrasias e profundidades inigualáveis, funcionando por diversos movimentos que os fazem ser arquetípicos em praticamente todas as frontes: no idealismo, na amizade, na confiança, na ingenuidade, na iconoclastia fantasiosa, no valor, que, afinal, os dois possuíam e possuem, pois não morrerão jamais, vivendo com muita justiça a fama de serem dois dos mais famosos tipos da literatura em todos os tempos.

Por preconceitos infundados, imaginamos que, por tantas e tantas adaptações e referências, histórias clássicas assim já não possuem interesse ou nada de novo têm a nos mostrar; esse é o engano mais estúpido em que podemos incorrer, pelo menos em casos como o do Quijote cervantino, obra magnífica, estupenda, delirante, majestosa e que em todos os episódios e páginas merece o rol de elogios que o sonhador fidalgo consagra sempre à sua imagem de donzela, a Dulcinea que em verdade é Aldonza.


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Seguindo na leitura de Don Quijote, o caráter insólito de várias personagens me chama a atenção. Há alguns fenômenos peculiares que ocorrem com elas, e isso lhes dá uma dimensão muito particular. Alguns exemplos:

- Todos que zombam de Don Quijote gostam de ridicularizá-lo tratando-o por grande cavaleiro e a Sancho por exímio escudeiro; mas, velados na sua hipocrisia, favorecem a imaginação dos dois companheiros, e assim acabam tratando-os melhor do que se simplesmente desmentissem seus credos. Há uma cena na casa de duques, em que Don Quijote e Sancho são levados a crer, de olhos vendados, numa farsa de artifícios teatrais; não desconfiando da peça que lhes é pregada, eles terminam a tarefa com grande alegria por fazê-la chegar ao bem sucedido término. Então eu questiono: o que fizeram a eles é moral? Porque no final das contas eles ficaram muito satisfeitos, e cônscios do valor de sua jornada e ação.


- Quando Don Quijote se depara com algo desconhecido ou inexplicável, começa logo a falar dos encantadores perversos que o perseguem. O que pode parecer simples fantasia é na verdade a maior das coragens: reconhecendo como verdadeiro apenas aquilo que se lhe parece como tal, Don Quijote enfrenta o desconhecido com ânimo reforçado, como a dizer: "certas coisas encantadas não posso vencer; as demais, enfrento de peito aberto e valor posto à prova".

- Os delírios de Don Quijote não me parecem ser tanto fruto de loucura, mas de uma percepção distorcida da realidade. No fim das contas, ele de fato tenta consertar os tortos do mundo e ajudar aos necessitados, mesmo que para isso corra o risco de sofrer a incompreensão do mundo que o julga anacrônico e estapafúrdio. Mas o que é mais errado, ser um cavalheiresco cavaleiro andante numa época errada ou ser injusto, vil e sórdido como todos que se divertem tratando-o como uma aberração digna de risadas?

- Sancho por vezes tem seu amo como louco, outras vezes é reputadamente tido por muitos como ainda mais fora do juízo que seu mestre. Mas para qualquer efeito ele está sempre a postos, e é injusto tratá-lo como um simplório mentecapto, quando ele demonstra crescer a cada aventura, até falando de maneira mais polida, sonhando com grandeza, trazendo a lógica humilde da vida prática a situações que são descritas de maneira tão ímpar por Cervantes que somos até gratos a Sancho por ele nos lembrar que nada é o que parece (ainda que ele mesmo acredite no contrário, por vezes, como no caso do singular encantamento de Dulcinea).

- Há que se destacar a beleza inesperada dos conselhos que Don Quijote dá a Sancho quando o fiel escudeiro está prestes a finalmente tornar-se governador de uma ilha.

Minha leitura acaba provavelmente no fim do mês. Mas tudo isso cavalgará comigo para sempre no Rocinante imortal da minha lembrança. 


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Eu estou no fim da leitura de
Don Quijote, a menos de cinqüenta páginas do término, e a sensação é dúbia: por um lado sinto-me extremamente feliz por ter lido uma obra tão linda e fascinante, e por outro é como se eu estivesse deixando uma parte de mim com a leitura. Acompanhei durante mais de três meses os devaneios do fidalgo e seu escudeiro, os dramas e comédias de que foram vítimas e também a vida de mil pessoas com que se depararam. E aí acabo assim, numa semana qualquer, já pensando no próximo livro a ler. Don Quijote morto mas imortal.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Minhas influências de Resnais

Uma das melhores coisas é pesquisar influências, influenciados e influenciadores. Se há alguém em que você confia, ou um artista que você admira, procurar o mundo que cerca essa pessoa e suas bases (de pensamento) é fascinante e esclarecedor. Foi graças ao Deep Purple que eu conheci Rainbow, Blackmore's Night, Whitesnake etc. Seguindo os passos de Truffaut interessei-me pelas obras de Henri-Pierre Roché, Ray Bradbury, David Goodis, Henry James. Os exemplos abundam e abundarão, mas é difícil que alguém tenha mais "méritos" no meu garimpo cultural que o nonagenário Alain Resnais.

Resnais é, há muitos anos, uma das pessoas que mais me interessam culturalmente. Cada opinião sua, cada sugestão ou manifestação, traz à minha atenção um foco diferenciado e instigante sobre o qual me debruçar. Por se interessar por inúmeros segmentos da expressão artística humana, Resnais tem muito a falar e a mostrar em mil campos que me interessam. Vou tentar falar brevemente sobre algumas coisas que procurei e consumi graças ao velho Alain.

Cinema

Além de seus magníficos filmes, Resnais abriu minha cabeça em muitos outros campos. Os roteiristas de seus primeiros longas (Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet) viraram também cineastas e fui atrás de seus filmes. De Duras, vi Nathalie Granger e Le camion. De Robbe-Grillet, o excelente La belle captive, que me hipnotizou já em seus momentos iniciais. E seu antigo parceiro Chris Marker? Quem conferir La jetée e Sem sol, entre outros, só terá a agradecer o prazer de ter olhos.

Além disso, seu carinho e atenção para com os atores de seus filmes me fez empolgar-me não só com sua "turma" habitual (Sabine Azéma, André Dussollier e Pierre Arditi) como abriu meus olhos para intérpretes como Lambert Wilson, Claude Rich, Isabelle Carré, Mathieu Amalric, Delphine Seyrig, Geraldine Chaplin, Emmanuelle Riva. O critério é simples e quase sempre funciona: se Resnais utilizou tal ator, tal ator é uma pessoa a se notar. O faro resnaisiano virtualmente nunca se engana.

E há o casal Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri, que não apenas roteirizaram dois filmes de Resnais (Smoking / No smoking e Amores parisienses) como co-estrelaram um. A dupla depois passou a atuar em, roteirizar e até dirigir outros filmes. É preciso ver seus filmes e obras. E eu sequer os conheceria, não fosse por Resnais e sua generosidade em usar dois jovens roteiristas para escreverem dois de seus filmes, entre quinze e vinte anos atrás.

Quadrinhos

 Resnais é um grande amante de quadrinhos. Foi um dos fundadores na França da Sociedade dos amigos dos quadrinhos (Société des amis de la bande dessinée), e a todo instante deixa nítido esse amor pelas HQ. Um de seus mais divertidos filmes, I want to go home, é simplesmente uma ilustração desse carinho pela arte sequencial. Para roteirizar essa obra, Resnais chamou ninguém menos que o grande quadrinista americano Jules Feiffer. E é difícil não se empolgar com as constantes referências a Schulz, a Caniff e outros mestres dessa arte, e também é difícil não se interessar pelo Popeye de Segar (com direito a Depardieu fazendo cosplay do personagem numa cena) e pelo próprio Feiffer, que também envereda pela animação (!), criando "consciências animadas" das personagens do filme.

É ótimo ver um desses respeitados intelectuais como Resnais abraçando causas como a que versa a não-demonização dos quadrinhos. Resnais chegou a declarar que um de seus grandes sonhos irrealizados é fazer a adaptação cinematográfica dos X-Men! Sua sincera apreciação pela "banda desenhada" é um alento e um farol: então também preste-se a devida referência a suas dicas nessa área! (E divirtamo-nos com as brincadeiras do diretor, como a abertura de Smoking / No smoking).

Literatura

Uma das marcas iniciais de seu cinema era trazer roteiros originais feitos por escritores profissionais, sem experiência na confecção cinematográfica. Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Jacques Sternberg, Jorge Semprún, Jean Cayrol, alguns dos nomes com que trabalhou nesse período, são nomes relevantes e importantes para qualquer estudo da literatura contemporânea francesa (ou mundial). Ir atrás dos romances de Duras e das obras e roteiros de seus colegas "resnaisianos" é adentrar um mundo de infinitas possibilidades literárias e formas diferentes de se exprimir e impressionar.

Há também que se destacar o dramaturgo Alan Ayckbourn, a quem Resnais sempre se volta, e o caso inédito de Christian Gailly, autor de L'incident, único romance adaptado por Resnais (e agora Resnais também vem escrevendo em parte seus filmes), origem de seu belo Ervas daninhas. Ainda não li Ayckbourn, mas encomendei e li L'incident, excepcional relato detentor de uma voz absolutamente ímpar, que eu nunca havia realmente visto na ficção escrita.

Música

O filme Amores parisienses é todo ele composto de canções populares francesas, indo de Piaf a Gainsbourg, de Alain Souchon a Jacques Dutronc. Foi nesse filme que eu tive meu primeiro contato com France Gall e com o maravilhoso Julien Clerc, compositor de vitalidade e talento estupendos, totalmente obscuro no Brasil e a quem eu jamais iria chegar não fosse por Resnais. Graças a ele e a esse encantador filme, todo um mundo da canção francesa, longe dos tradicionais eixos "de exportação" (ainda que haja Aznavour e congêneres), apareceu para mim e eu descobri até mesmo verdadeiros mitos de que simplesmente não se fala no Brasil, como Claude François.

Além disso, os compositores originais de seus filmes. Mark Snow, "anônimo" autor da música-tema de Arquivo X, trabalhou mais de uma vez com Resnais e cunhou pérolas que podem ser ouvidas por exemplo aqui (e no trailer abaixo colocado); o célebre Penderecki compôs para Eu te amo, eu te amo; Hiroshima mon amour tem trilha de Giovanni Fusco e do genial Georges Delerue, famoso por sua parceria com Truffaut e pela música de O desprezo.
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Poderia ainda falar do desejo de conhecer pintura e pintores que seus curtas Van Gogh, Guernica e tantos outros despertam, mas não posso me estender mais na louvação: basta procurar os filmes de Alain Resnais, o interesse vem naturalmente a partir daí. Apenas resta agradecer ao cinema por ter acolhido esse grande homem, que nunca desanima em fazer e disseminar coisas belas. Que viva longamente.



Atualização (01/05): Texto sobre o penúltimo filme de Resnais (e um pouco sobre sua carreira), Ervas daninhas.