Li e reli muitas vezes, há alguns anos, os dois primeiros volumes da série Bórgia, escrita por Alejandro Jodorowsky e ilustrada por Milo Manara. Aliás, cheguei até a escrever brevemente sobre eles, num texto hoje desatualizado: aparentemente, segundo puxo da memória e leio em alguns sites, a ideia da saga era concebida como uma trilogia. Ocorre que Jodorowsky e Manara acharam por bem se expressar em mais um tomo, e acabei me afastando da série enquanto aguardava o demoradíssimo terceiro volume. Demoradíssimo porque eu era impaciente e acreditava que dois anos eram uma eternidade...De todo modo, comprei há algum tempo (seis meses? Um ano?) o terceiro volume, e, aguardando o quarto e último, resolvi não prosseguir na leitura até completar de vez a série. A ocasião se fez semana passada, quando finalmente adquiri o desfecho da história, feito ano passado, e separei algumas horas (intercaladas) num dia para lê-la de cabo a rabo, continuamente, como um livro. Foi uma leitura árdua, pesada, angustiante. Era difícil esquecer tudo que acontecia numa página e virar para a seguinte como se ainda houvesse alguma esperança.
A leitura simplesmente me extasiou! "Bórgia" era ainda mais impressionante do que eu recordava. É difícil achar um momento de calmaria no meio de tantas perversões e monstruosidades e sujeiras e crimes, e não foi apenas uma vez que senti uma tontura, uma vertigem quase física, um nojo e indignação insuportáveis. Jodorowsky não fugiu ao mais grotesco e sórdido para denunciar os horrores da ignorância, do poder corrupto, da ditadura moral e religiosa de uma era que infelizmente não parece alegórica ou extinta.
Manara tem aqui um de seus grandes momentos como artista, se não o melhor. Se em trabalhos como "O clic" e suas continuações seus roteiros de próprio punho demonstravam uma fragilidade narrativa algo constrangedora (com poucas exceções), é trabalhando com textos de outros autores que Manara demonstra também seu gênio, colaborando para fazer de obras tão díspares como "El Gaucho" (escrita por Hugo Pratt) e "Viagem a Tulum" (roteiro de Fellini) trabalhos fascinantes e imprescindíveis. Em "Bórgia" ele revela seu talento com a arquitetura, com o sombrio, com a fábula de morte e cinismo, passando muito além do rótulo de "desenhista de mulher pelada". Reconfortante um artista consagrado procurando ainda novos caminhos de expressão, e quem conhece Manara por suas obras essencialmente eróticas terá uma (grata) surpresa com sua parceria com Jodorowsky.Era difícil mexer com uma saga de tamanho peso histórico "anterior" a qualquer romantização e releitura, e Jodorowsky e Manara conseguiram lidar à perfeição com os Bórgias, os papas e cardeais, Savonarola, Maquiavel, Leonardo da Vinci e todo o contexto de depravação, pestes, desespero, ausência de comprometimento com qualquer coisa positiva, perseguição a credos, descaso com a miséria, extermínio da cultura questionadora... No final fica a desoladora certeza de que é mesmo impossível enxergar uma distância entre a Roma da baixa Idade Média e o mundo de hoje: o terror só muda sua roupa, a maldade humana é perene.








