domingo, 8 de julho de 2012

Sacarrolha

Se o Brasil tem um defeito de que não se pode nunca escusá-lo, esse defeito é o de não preservar sua cultura. Inúmeros filmes, programas televisivos, discos e livros estão totalmente relegados ao ostracismo, às cópias perdidas, aos garimpos ocasionais em sebos. Com quadrinhos, a coisa não é diferente. À parte exceções cada vez mais raras, não cuidamos dos nossos artistas e personagens. Ao contrário de tantos clássicos americanos e europeus, em nosso país não temos praticamente nenhuma edição integral da obra de nenhum autor, por mais importante que seja. Não há organização, financiamento e interesse capazes de publicar as obras completas de Henfil, Laerte, Ziraldo. Isso para ficar nos nomes mais conhecidos! Quadrinhos no Brasil ainda são tratados com lamentável negligência.

Uma pequena (mas substancial) mudança nesse quadro se dá com o lançamento do Almanaque Sacarrolha, compilando um pouco da história de um personagem histórico que está completando quarenta anos oficialmente em 2012. Sacarrolha é uma criação do "italiano carioca" Primaggio Mantovi, e fez muito sucesso nas bancas durante curtos mas marcantes anos. Vendia dezenas de milhares de exemplares todo mês, bem mais do que a maior parte dos álbuns e gibis que saem hoje por aqui. O relançamento do simpático Sacarrolha é talvez a publicação de mais importante resgate nacional no campo dos quadrinhos este ano.

Sacarrolha é um palhaço que trabalha no Gran Circo Kabum. Em suas cômicas histórias um pouco do mundo do circo é mostrado no cotidiano de seus trabalhadores, do chefe ao mágico, do atirador de facas ao domador de feras. O circo, desde sempre, foi um excelente palco (literalmente) para ambientar certas emoções humanas, e grandes autores como Fellini e Chaplin souberam aproveitar seu potencial e demonstrar que por trás das fantasias e dos números ensaiados existem almas que sofrem, que se alegram, que choram. Sacarrolha também dá a sua contribuição: suas peripécias vão bem além das tradicionais gags que estamos acostumados a imaginar quando falamos em ambientes circenses. Há histórias sobre amizade, ecologia e até mesmo estranhas aventuras envolvendo vilões, perigos e tudo que manda o figurino!

Primaggio escolheu como personagem, como ele mesmo sempre diz, um tipo universal, que é a mesma coisa em qualquer lugar do mundo. Sem deixar de ser brasileiro, seu Sacarrolha é mesmo um "cidadão do mundo", e não é difícil percebermos que ele não só é inalterável em outros lugares do planeta como também resiste muito bem ao tempo: o humor do palhacinho e sua turma continua bastante competente e a arte de Primaggio e sua equipe é muito desenvolta e interessante pelos ângulos, perfis, movimentos, sem falar na caracterização das figuras, como as mangas com punhos redondos que ostenta Sacarrolha — dado seu dinamismo, ele é quase um personagem de desenho animado que preferiu a tranquilidade das páginas impressas dos gibis.

Primaggio também é conhecido por seus livros sobre o faroeste cinematográfico e seu trabalho com a Disney. Mas seu nome deve estar cada vez mais associado a Sacarrolha, um trabalho tão pessoal e tão bonito, que finalmente parece estar tendo uma redescoberta à altura: este ano o troféu HQ Mix o homenageou sagrando-o como a efígie de sua estatueta, e o lançamento do luxuoso Almanaque Sacarrolha é um tributo mais do que devido. Esperamos que a volta da trupe do Gran Circo Kabum seja apenas uma de muitas ações feitas para preservar a memória do gibi nacional, e que quando ouçamos falar de "palhaçada" em algum assunto envolvendo quadrinhos brasileiros só nos venha à cabeça as divertidas confusões do Sacarrolha.

Atualização (20/12/2012): Primaggio Mantovi gentilmente enviou-me este belíssimo cartão de boas festas estrelado pelo querido Sacarrolha:

7 comentários:

xandrohq disse...

Legal...Filipinho!:D

Filipe Chamy disse...

Valeu, Xandro.

Primaggio Mantovi disse...

Boa tarde, Filipe! Gostei DEMAIS do modo, todo pessoal, que descreveu o meu trabalho no Sacarrolha.Você capturou a essência que, desde sempre, tento aplicar nos meus trabalhos, não importando o gênero. Mesmo nos livros sobre a sétima & nona artes, procuro manter essas características. Muito obrigado! Obs.: Você escreve muito bem... Razão mais que justa para considerá-lo "companheiro de profissão"! Abraço, Primaggio

Filipe Chamy disse...

Grande Primaggio!

Eu gostei MUITO do Sacarrolha, e o mínimo que eu poderia fazer era, tendo este espaço, externar minha empolgação! Só dá uma tristeza vendo aquele montão de capas e não possuindo revista alguma, hehe. Vou ver se caço algumas nos Mercados Livres da vida.

Adorei o humor do Sacarrolha, sua gentileza para com os amigos, seu amor pelas crianças, sua vontade de ajudar os outros e seus sacrifícios com a rotina do circo: pra ele, o mais importante é deixar os outros felizes, e não o cronograma de trabalho! Um personagem muito positivo, que me alegrou este final de semana e alegrará muitos mais, em futuras releituras. :)

E obrigado pelos elogios! Quando o material é bom, a inspiração vem a cavalo, rs!

Anônimo disse...

Sobre o Almanaque da Kalaco: que bacana poder encontrar um álbum desse à venda!

Anônimo disse...

Vi que o Pipoca e Nanquim tb fez uma boa divulgação!

Filipe Chamy disse...

Não tinha visto, Kleiton! Ficou bem legal mesmo. E acertaram na crítica: o preço foi muito salgado. E, claro, a matéria deveria ter sido creditada.

Mas compartilho da alegria pela volta do Sacarrolha, e torço muito para que essa edição faça sucesso!