segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Macanudo

Todos os amantes das tiras de quadrinhos sabem que nas últimas décadas essa forma de arte sofreu reajustes tremendos. Adaptou-se aos novos tempos e às novas mídias. Como esperar, por exemplo, encontrar nas tiras grandes sagas continuadas, como em Flash Gordon, em Dick Tracy e no Mickey Mouse de Floyd Gottfredson? Isso não existe mais. As histórias longas saem em revistas e livros. As tiras atualmente apresentam quando muito minúsculos arcos narrativos, quase imperceptíveis; são, em sua maioria, pequenos relatos humorísticos (outros gêneros são totalmente marginalizados nas tiras contemporâneas), com piadas fechadas, compreensão imediata e isolada dia a dia. A continuidade foi virtualmente extinta.

Também existem as tiras publicadas diretamente na internet. O humor de menes/memes, as repetições de chavões e frases, o minimalismo técnico, o traço rudimentar/esculachado. O simples humor da frase, do chiste, da ironia, da referência. Tudo isso parece a degradação das tiras, em que a mídia dos quadrinhos surge apenas como uma muleta, nunca um suporte para expressão de ideias, desenvolvimento de algum pensamento. Essas tiras virtuais, em sua maior parte, resumem-se a irrelevantes amontoados de tendências que em dias envelhecerão. Não querendo parecer saudosista, já que saudosismo é um mal subterrâneo terrível, a meu ver essas tiras padecem de qualquer identidade ou importância.
Então por isso é capital reconhecermos alguém como Liniers, que em seu Macanudo vai de encontro a todos esses problemas que tornaram a tira (sobretudo de jornal) uma arte esmaecida, inútil e desnecessária; Macanudo não se ressente das dificuldades dessa arte e faz dos empecilhos escada para alcançar algo novo e criativo e fascinante. Liniers, nosso vizinho argentino, aproveita todas as possibilidades das tiras e cria com isso um mundo inédito que só faz sentido nessa forma de quadrinhos — o que por si só já é algo digno de atenção, pois não é a arte mais impressionante aquela cuja forma é inseparavelmente parte de seu próprio conteúdo? Macanudo é uma bela tira também porque é pensada como tira.

Liniers é um aficcionado por tiras e quadrinhos que resolveu não cometer o "erro" de seus mentores Bill Watterson e Quino: bolar um personagem principal. Que depois de um tempo o artista, até então enamorado e embriagado de amor por sua criação, cansa-se; quer sair por outros caminhos, trabalhar outros rumos, quer dar uma de Angeli e matar Rê Bardosa, quando ela passa a lhe sufocar. Liniers resolveu isto de maneira simples: sua tira não tem um personagem principal. Ou talvez tenha vários. Quem é o protagonista de Macanudo? É tanto Enriqueta, a jovem menina amante da leitura, quanto Fellini, seu filosófico gato; é tanto Olivério, a azeitona aterrorizada, quanto o homem que traduz os títulos de filmes; é tanto o misterioso homem de preto quanto uma infinidade de pinguins e outros animais, crianças, adultos, seres de fantasia ou de realidade. Cada um tem seu espaço, seu momento, seu brilho e sua voz.

O esquema é quase sempre o mesmo rígido esquema das tiras que são produzidas hoje: piadas. Mas o humor de Liniers não se resume à comédia fácil, à reprodução sarcástica do noticiário, os paradoxos comportamentais. Macanudo é capaz de num dia ilustrar o melancólico bucolismo da infância e no dia seguinte apresentar seu autor mudado em coelho (uma de suas marcas) falando sobre seu cotidiano de cartunista, para no dia seguinte zombar dos clichês do cinema, ou brincar com um passado hipotético de Picasso. Em comum a todas as tiras: o delicado traço, as cores sugestivas, a empolgação com o formato das tiras, com a graça das personagens, com a beleza da vida, com tudo que pode fazer bem, animar, alegrar, consolar, inspirar. Utilizando-se de todas as armas possíveis de convencimento e encanto, Liniers é como um diretor de cinema que cria todo um mundo dentro de um enquadramento mais ou menos fixo, não nos deixando nunca duvidar de sua mágica.

E como Macanudo não sai mais nos jornais brasileiros, a opção para ver as novas tiras, diariamente, é acessar seu perfil no Facebook ou este site. E deliciar-se a cada dia com as invencionices de alguém que ama as tiras e faz desse veículo um meio de comunicação realmente memorável

Bônus: um belo documentário sobre Macanudo, Liniers e a arte do argentino e seus quadrinhos, dirigido por Franca Gonzáles.

7 comentários:

Lúcia disse...

Muito bom o texto e muito pertinente a reflexão!

Fui na palastra do Liniers que teve aqui na Caixa Cultural do RJ e achei interessante como ele falou que é muito difícil reconhecer as tiras como forma de arte em países como os nossos que já se referem a elas no diminutivo (historietas, quadrinhos, tirinhas). Inclusive elogiou o termo Bande Dessinée.

De resto, Macanudo é lindo, há muito tempo que não me envolvia tanto com uma tirinha! [aliás obrigada por ter me apresentado a obra do Liniers] E bela menção ao "homem que traduz os títulos de filmes" hahaha não poderia ter ficado de lado.

Filipe Chamy disse...

Ah, disponha. Cedo ou tarde você esbarraria e se encantaria, tenho certeza. Difícil resistir. :)

De fato, Liniers está certo: quadrinhos, talvez a arte mais subestimada (e cada vez mais dividida em "guetos", em grupinhos, em seitas, em nichos geeks, nerds etc.; segregada, enfim), continua sem encontrar muito respaldo/aceitação, a não ser com muitas ressalvas e olhares tortos. E a não ser que você fale dos "grandes temas", faça graphic novels sobre guerras, coisas assim. No mais, é "revistinha" descartável, coisa pra criança, todas as crianças crescem (exceto uma) e deixam de ler... Incompreensão total e bem inexplicável.

Lúcia disse...

haha adorei a referência!

Anônimo disse...

Não sou um grande fã dos trabalhos do artista. Mas gostei da matéria. E parabéns pelos autógrafos e ilustrações exclusivas.

Filipe Chamy disse...

Ah, obrigado! Esse primeiro desenho, da Enriqueta, eu emoldurei, está na parede do meu quarto. :)

Eu também tinha certa resistência com o Liniers, depois ele foi me conquistando de tal maneira que nem sei como eu pude não gostar tanto dele um dia.

Vanessa disse...

Excelente texto :)
Liniers é apaixonante e parece inesgotável.

Vida longa a OOOOLLLLLGGGAAA!

Filipe Chamy disse...

Falou e disse, Vanessa! No mais, só digo uma coisa:
































OLGAAAAAAAAAAAA