quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Sandrine Bonnaire

Durante aproximadamente cinco anos (2007-12), escrevi na Revista Zingu!, um espaço aberto à discussão de temas cinematográficos marginalizados e majoritariamente dedicado ao cinema brasileiro popular, à Boca do Lixo e aos autores e técnicos obscuros de uma porção expressiva da nossa identidade em celulóide. Durante mais de 130 (!) textos para a revista, discuti temas tão díspares como o único e incrível filme protagonizado pelo Fofão, animações da turma da Mônica e até mesmo filmes de sexo explícito! Da edição 4 até seu derradeiro número 54 participei com críticas, colunas e textos de todo tipo, desde uma análise sobre certos aspectos do clássico "O bandido da luz vermelha" até odes a musas da telona — cuja última participação minha se deu, com uma publicação conturbada por problemas de delay, em louvor à maravilhosa Natalie Wood.

Em março de 2010, fiz um extenso texto sobre um dos meus grandes amores em cinema: Sandrine Bonnaire. Eu a conheci pessoalmente em 2011, e ensaiei entregar o texto a ela. Não gosto de tudo que nele há, mas, como essa é uma das "edições perdidas" da Zingu!, que sabe-se lá se poderão voltar ao ar algum dia, colo aqui todo esse panegírico a uma das grandes figuras femininas do cinema das últimas três décadas (desatualizado, pois ela fez mais alguns trabalhos depois — inclusive dirigiu mais um longa):

Um dos sorrisos mais bonitos do mundo pertence a Sandrine Bonnaire, atriz francesa por vocação e destino, uma das presenças mais fascinantes do cinema nos últimos anos. Sandrine nasceu em fins de maio de 1967 e desde sua primeira aparição no cinema, como protagonista já em 1983, abraçou cada filme como uma mãe abraça seu filho pequeno. Este texto é uma pequena carta de admiração a uma atriz admirável, traçando breves considerações sobre seus trabalhos mais importantes, década a década.

Anos 80

Sandrine iniciou sua carreira de atriz sob um auspício favorabilíssimo: a obra-prima Aos nossos amores, de Maurice Pialat. Pialat não apenas foi o introdutor de Sandrine Bonnaire no cinema — antes ela havia feito quando muito pontas (não creditadas e nem confirmadas) em poucos filmes — mas a ajudou a se firmar como intérprete protegendo-a não só por trás como na frente das câmeras: ele fazia no filme o papel de seu pai. Sandrine saiu-se admiravelmente bem como Suzanne, jovem mulher que entra com dificuldade na vida adulta, hesitando entre o amor e o sexo, transitando entre dúvidas naturais para a idade e sua conturbada relação com a instável e agressiva família. Uma personagem difícil, que Sandrine desenvolve com espontaneidade ímpar, criando uma das maiores representações da adolescência no cinema. O magnífico desempenho da jovem francesa a coloca em evidência em revistas, jornais, críticas, projetos de novos filmes.

Ocorre que o cinema não costuma entender ou aceitar atores jovens, portanto Sandrine acaba fazendo alguns filmes que não a valorizam: Tir à vue e Le meilleur de la vie são exemplos de produções que apostam apenas no superficial — a nudez do belo corpo juvenil de Sandrine Bonnaire —, o que talvez explique o pudor de Sandrine nos anos seguintes, onde quase não se expõe fisicamente em filme algum, sob nenhum pretexto. A menina — ela tem por volta de dezesseis anos nessa época — parece então despontar de vez e recebe convites irrecusáveis, de grandes diretores: assim, em poucos anos trabalha com Agnès Varda — para quem faz a inesquecível composição da protagonista de Os renegados, moça pária em uma descompassada sociedade contemporânea —, com Jacques Doillon (em A puritana, ao lado de Sabine Azéma e Michel Piccoli), com André Téchiné (em Os inocentes, junto a Jean-Claude Brialy, figura tarimbada nos filmes nouvellevaguistas), com Claude Sautet (em Quelques jours avec moi, formando um charmoso casal com Daniel Auteuil e dividindo a cena também com Danielle Darrieux e Jean-Pierre Marielle), e novamente com seu padrinho Maurice Pialat, em dois filmes junto a Gérard Depardieu; em Polícia ela tem presença curta e marcante, mas em Sob o sol de Satã o espetáculo é quase todo dela: sua Mouchette é um grande momento dramático e certamente sua desenvoltura segura e honesta foi um dos trunfos que fez esse polêmico filme questionador da fé realizado por Pialat sagrar-se vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Em 1989 ela faz dois filmes: o pouco comentado Peaux de vaches, no qual se relaciona, com certa desconfiança inicial, com Jean-François Stévenin — ator e ajudante de François Truffaut —, um filme cheio de barulhos de máquinas e pequenos sentimentos acobertados por uma espécie de desconforto social; e Monsieur Hire, uma obra-prima de Patrice Leconte baseada em um romance do brilhante Georges Simenon. Em Monsieur Hire, Sandrine co-protagoniza, ao lado de Michel Blanc (excelente no papel-título), uma trama mais sentimental que policial, onde o maior crime (e perigo) é se apaixonar. Sua Alice é tão erótica e dúbia quanto a da obra literária, mas a doçura de Sandrine é tanta que faz o espectador sempre ficar de seu lado e perdoar seus erros, aceitar suas mentiras. É o filme em que Sandrine está mais linda em toda a sua filmografia; além de a fotografia destacar cada um de seus trajes, femininos e sugestivos, Sandrine está com os cabelos louros (a personagem literária é ruiva), a aparência jovem, alegre e entusiasmada, o corpo esculpido de maneira sublime. A cena em que aparece apenas de calcinha e sutiã se trocando defronte à janela onde Michel Blanc a espia e escuta Bhrams é a mais perfeita do filme e provavelmente a melhor já filmada por Leconte em sua carreira. O filme acabou servindo como um tributo tardio a Simenon, morto naquele mesmo ano.

Anos 90
 
Década prolífica para Sandrine Bonnaire, iniciada com La captive du désert. Trata-se da história (real) de uma francesa que ficou refém de uma tribo africana por meses e meses. O filme não introduz nada, não há diálogos muito aprofundados, os silêncios, olhares e as extensas repetições dão conta do marasmo a ser retratado e alcançado. Dirigido pelo famoso fotógrafo Raymond Depardon, se assemelha a um documentário da National Geographic, filmado à distância com uma câmera de longo alcance. A sensação de "verdade" da obra é enorme, inacreditável; se o espectador não conhecer Sandrine Bonnaire, se for o primeiro filme que vir com ela, provavelmente terá plena certeza que vê um documentário. Mesmo porque o restante de elenco é tribal de fato, e o filme é consideravelmente voyeurístico, bem pouco aproximado, iniciando-se já com a situação montada — sem sequer mostrar o que houve para a mulher ser capturada.

Em seguida, Sandrine tem encontros muito importantes: o primeiro é com Marcello Mastroianni, em Verso sera, produção italiana de sentimentalismo aflorado pela presença do inesperado casal formado pelo velho Marcello e pela jovem e bela Sandrine. O segundo é com William Hurt, com quem viria inclusive a ter uma filha, de nome Jeanne; o casal esteve junto em A peste, adaptação do célebre romance de Albert Camus, espécie de fábula apocalíptica voltada na verdade para desencontros afetivos, e em Confidências a um estranho, drama de época em que o fantasma incômodo da aristocracia reina sobre personagens embrutecidos pelas circunstâncias. O terceiro encontro é com Jacques Rivette, com quem faz três belíssimos filmes: Jeanne la Pucelle é uma obra bipartida sobre a santa heroína Joana d’Arc, sendo a primeira parte sobre as batalhas que liderou (Les batailles) e a segunda, sobre sua prisão como herética (Les prisons) — a expressão de Sandrine é mesmo a de uma figura etérea, imaterial, que tem uma missão a cumprir, e é indizível o grau de perfeição de sua representação na cena da condenação, com a luz mudando, o olhar de hesitação, o texto agressivo, a abjuração, o sorriso quando ri das acusações... —; Defesa secreta é um filme de encenação majestosa e atuações sutis, dramas íntimos e poderosos, num trabalho meticuloso mas apaixonado, como de costume nas fitas do diretor; e Sandrine mais uma vez tem um desempenho ímpar, numa personagem que vai praticamente se metamorfoseando moralmente ao longo da obra. O quarto encontro importante é com Claude Chabrol, que dirige Sandrine em dois momentos muito especiais: Mulheres diabólicas é a celebração das “mulheres perversas” chabrolianas, onde Sandrine e Isabelle Huppert dividem a cena e as maldades, arrepiando o espectador com sua frieza e psicopatia; A cor da mentira é um belo estudo à Fritz Lang sobre o que um boato, verdadeiro ou não — o marido de Sandrine é acusado de ter assassinado uma garotinha —, faz à vida e à reputação de uma pessoa fraca, que tem de encontrar forças para conviver com a culpa e o remorso de uma atrocidade cometida sabe-se lá por quem.

A década ainda traz a Sandrine um reencontro, com uma de suas figuras “descobridoras”, Agnès Varda: Sandrine faz uma participação afetiva em As cento e uma noites, relembrando personagens anteriores, principalmente a moça desajustada de Os renegados — o filme que rendeu o Leão de Ouro a Varda dez anos antes, criação emblemática para Sandrine e uma de suas principais marcas de maturidade como atriz. Esse reencontro tem lugar portanto em 1995, e nele também Sandrine contracena novamente com Michel Piccoli (com quem trabalhara na década anterior em La puritaine), o que aumenta o ar familiar da carinhosa homenagem prestada por Varda a essa cada vez mais completa jovem atriz francesa.

Entre as outras obras que contaram com a participação de Sandrine nessa década o destaque vai para Leste-Oeste – O amor no exílio, mais uma produção elogiada do irregular Régis Wargnier (o diretor de Indochina). Não chega a ser um trabalho excepcional, pois esbarra na preguiça acadêmica costumeira do cineasta, mas é com esse filme que Sandrine encerra a década de 1990, sua década mais produtiva, na qual se permitiu experimentalismos em outros países e gêneros cinematográficos.

Anos 2000
 
 Mais um período de intenso trabalho para Sandrine Bonnaire — interrompido em 2004 quando teve sua segunda filha, Adèle, com o roteirista Guillaume Laurant (seu marido desde 2003). Os filmes em que atua nesta fase são caracterizados por produções modestas, muitas vezes de cineastas neófitos e com elenco desconhecido. O primeiro deles é Mademoiselle (não confundir com o filme de mesmo nome dirigido em 1966 por Tony Richardson, com Jeanne Moreau), história leve de um romance fugaz. Sandrine não fazia muitas comédias no início de sua carreira, o que vem paulatinamente mudando. Mademoiselle não é um filme de humor, mas um filme de amor, portanto tem uma doçura que escapa a quem não entende esse sentimento. O filme seguinte, C’est la vie, tem um tom mais sombrio, ainda que o filme seja bastante claro e alegre na superfície; trata-se de uma esforçada Sandrine Bonnaire, desapegada e alegre, convivendo com a morte dos outros, numa narrativa delicada e que ainda tem o grande ator e cantor Jacques Dutronc co-protagonizando o filme com a francesa (e cantando com ela!).

 Após uma participação no Femme fatale de Brian de Palma, Sandrine volta a trabalhar com outro “descobridor” seu: Patrice Leconte. Em mais um belo trabalho autoral, Confidências muito íntimas, considerável sucesso de público e crítica. No filme de Leconte, os personagens se cruzam por acaso, e, dependentes emocionais, se relacionam à distância, mesmo em pensamentos. Confidências tornou-se um dos mais celebrados (e conhecidos) filmes com Sandrine Bonnaire fora da França, e é co-estrelado pelo ator rohmeriano Fabrice Luchini.

Os filmes seguintes não provocam muita repercussão e nem sequer foram lançados no Brasil: Le cou de la girafe é uma parceria interessante entre Sandrine e Claude Rich, personagens estremecidos por desencontros provocados pela inocência infantil de uma pequena menina, filha de Sandrine; L’équipier traz um amor conturbado entre uma mulher casada e um homem misterioso numa comunidade campesina situada numa região afastada e cujo único diferencial é um obscuro farol; Je crois que je l’aime é outra comédia romântica, açucarada na medida adequada para permitir a Sandrine interpretar sua personagem com desenvoltura e segurança; em Demandez la permission aux enfants as crianças é que tomam o controle de tudo, criando situações embaraçosas e forçando seus pais a intervirem de maneira curiosa e engraçada; Un coeur simple é uma adaptação do conto homônimo de Gustave Flaubert, com Sandrine fazendo o papel da servil Félicité, tão embrutecida quanto na história original e com uma nobreza tão pouco compreendida quanto; L’empreinte de l’ange mostra a agonia de uma mãe com uma estranha se aproximando da filha (mas talvez os papéis não sejam exatamente esses); Joueuse traz Kevin Kline em seu primeiro papel francófono e contracenando com Sandrine Bonnaire em seu último filme até a data, neste trabalho em que os protagonistas fazem do xadrez e da cultura uma maneira de se conhecerem e respeitarem.

Curiosamente, o trabalho mais importante da década para Sandrine, por razões profissionais e pessoais, não foi um filme em que atuou como atriz, mas um documentário dirigido por ela mesma: Ela se chama Sabine é um delicado retrato de sua irmã (a moça do título), jovem autista que teve sua situação física e mental agravada pela ignorância, negligência e imperícia do atendimento médico a que foi submetida. Por um lado é uma história alegre, porque mostra o amor de Sandrine por sua irmã, cenas da família reunida e feliz, décadas atrás; mas também é triste, quando mostra a degradação acentuada de Sabine e seu estado beirando a total inconsciência mental em certos momentos. Aos interessados em ver este doloroso filme-tributo, existe na rede virtual, em programas de compartilhamento, uma versão que traz de bônus um programa de televisão em que Sandrine foi convidada a comentar o filme e debater o assunto do autismo com especialistas da área médica, o que faz com veemência e sinceridade. Sandrine, por sinal, tem respeitável histórico ativista no assunto do autismo, chegando inclusive a se reunir oficialmente com Nicolas Sarkozy para discutir o tema.

Sandrine ganhou vários prêmios em sua carreira, sendo os mais importantes o César (duas vezes: como revelação por Aos nossos amores e como atriz por Os renegados) e o troféu de melhor atriz em Veneza (por Mulheres diabólicas, honraria dividida com Isabelle Huppert pelo mesmo filme). Também foi indicada e premiada outras inúmeras vezes. Porém o mais importante para ela não é colecionar estátuas ou placas, mas alcançar com suas atuações diferentes níveis de expressividade, de sensibilidade, de comunicação. Sandrine Bonnaire é uma atriz apaixonante porque é uma mulher apaixonante.

Bônus: alguns vídeos com momentos marcantes de Sandrine Bonnaire.

12 comentários:

Vanessa disse...

Excelente texto, como sempre. Linda moça.

Filipe Chamy disse...

Linda, né? :)

Agradeço o elogio, mas acho um texto pouco enxuto e objetivo. Hoje eu faria algo mais na linha do que fiz depois, para a Natalie Wood.

Filipe Chamy disse...

Coloquei, em homenagem ao dia de hoje, mais uma foto dela - totalizando 13! :)

Anônimo disse...

Conheci Sandrine em 2011 também, mas fiquei sem os autógrafos, garanti só uma foto.
Como fã, curti o texto pelo sabor de retrospectiva, relembrar (quase) tudo que ela já fez...
Queria ler o da Natalie Wood, posta aí!

Filipe Chamy disse...

Tenho duas fotos com a Sandrine! Que bom que você também conseguiu, onde foi? Aqui em São Paulo (Cinesesc) acho que só eu fui pedir foto e autógrafo para ela.

Quanto à Natalie, essa parte do texto é um link; clique nele e veja o texto em uma nova aba!

Anônimo disse...

Consegui no Rio, no Instituto Moreira Salles. Fui uma das últimas pessoas a abordá-la, cerca de cinco foram falar com ela. Teve um rapaz que também levou um Criterion de "À Nos Amours" pra ela autografar (cheguei a pensar que era esse aí).

Meu antivírus estava bloqueando o link da Natalie (?!), mas finalmente consegui ler! Realmente, está bem mais enxuto e igualmente prazeroso. Só discordo em um ponto: para mim sua beleza encontra o auge em "Esta Mulher é Proibida" :)
Na verdade dois: mesmo mudando de tom no meio, admiro a tentativa de ousadia de "Love with the proper stranger" (me recuso a repetir o medonho título nacional).

Filipe Chamy disse...

Opa, agradeço o "prazeroso". O que não se pode dizer do título brasileiro desse filme do Mulligan, a despeito de nele também haver 'prazer'.

Eu gosto MUITO dos 2/3 iniciais desse filme. O terço final não me desagrada, mas acho deslocado, caberia melhor em outro filme, com outro tom.

O texto da Natalie também está melhor porque mais recente (escrevi ano passado). Acho que cada vez vou me aperfeiçoando mais, as coisas que escrevo neste blog me agradam muito mais do que as que produzi anteriormente, por exemplo. :)

Quanto a Sandrine no Rio, uma amiga minha foi (sem nada para ela assinar; eu que peguei com a Sandrine um autógrafo de presente para ela, tamanha a disponibilidade da moça!), e disse que ela foi pouco requisitada. Mas bom saber que o meu não foi o único DVD que ela assinou no Brasil! Quando ela veio aqui, nenhum filme com ela estava disponível em DVD no país... Pouco depois saiu o "Sans toit ni loi" (Os renegados/Sem teto nem lei), mas bobearam feio no atraso.

Anônimo disse...

É realmente uma pena que os filmes com ela quase nunca chegam por aqui - seja em dvd, seja no cinema. Ainda bem que existe a internet!
Queria muito também ler sua autobiografia...

Filipe Chamy disse...

Parece-me que são entrevistas, não? Queria MUITO ler esse livro, mas infelizmente não é fácil encontrá-lo, ainda mais por um bom preço. Nem no Bookdepository tem...

Anônimo disse...

É, na verdade ela "conversa" com dois jornalistas.
Não é auto nem é biografia? hahaha O livro, então. Nos sites que vi está caríssimo, sem contar o frete...
Pelas críticas e trechos parece ser muito bom.

Filipe Chamy disse...

Acredito que teve uma tiragem muito limitada, nem no Amazon tem mais.

Coincidência curiosa: hoje vi "Os amantes da Pont-Neuf" no cinema, e nos agradecimentos... SANDRINE BONNAIRE!

Anônimo disse...

:O

Que curioso!