Há cerca de três semanas resolvi perder um medo antigo e ler de uma vez por todas o Don Quijote (ou Dom Quixote) de Cervantes. O livro sempre me pareceu ser ótimo, todos comentam maravilhas dele e é considerado por todo mundo uma das melhores ficções já escritas; mas minha preguiça se devia a um problema antigo meu: sou MUITO lerdo para ler. O Quijote tem mais de um milhar de páginas, e isso me parecia muito desanimador. Mas aí tomei como resolução para o ano novo ler algumas pendências antigas acumuladas há anos. A edição do Quijote que estou lendo, a ganhei do meu pai em 2007. E vou falar: que livro MARAVILHOSO! Em todos os sentidos.
Primeiramente eu vou destacar a beleza do livro da Alfaguara, a edição em homenagem ao quatrocentenário da primeira parte do livro; além de um acabamento editorial perfeito, a edição tem mil apêndices, as portadas originais, explicações detalhadas sobre os arcaísmos da obra, um glossário extremamente completo e útil, mais o texto integral em espanhol com apontamentos que esclarecem, solidificam o entendimento e aguçam a curiosidade, aumentam a vontade de contextualizar o processo de escrita de Cervantes, suas fontes, influências, deixam claro as piadinhas de gramática, os erros (deliberados ou não) cometidos pelas personagens, as sutilezas empregadas na construção das frases, e tudo isso sem parecer intelectualóide, pedante, acadêmico (naqueles sentidos ruins), dando novos sentidos à compreensão do texto, auxiliando na busca por uma experiência completa de leitura. Vou dar um exemplo: no começo da obra, Cervantes descreve com muito detalhamento as roupas e modo de vida do nosso célebre fidalgo, e é preciso peneirar essas citações para entender como era absurdo para alguém JÁ NAQUELA ÉPOCA se deparar com o projeto de cavaleiro que era Don Quijote, que já usava roupas foras de época mesmo naquele início do século XVII, que tinha costumes assombrosos que já eram desconhecidos daquela geração etc.; sem essa ajuda, o leitor não se daria conta do IMENSO estranhamento das personagens ao encontrarem o fidalgo, e por que ele parecia sempre tão absurdamente deslocado e ultrapassado e ridículo.
Comecei falando da edição e já pulei para a história, não tem jeito; ela é tão lindamente narrada que eu, na minha proverbial vagareza, já devorei quase trezentas páginas e estou entrando na quarta e última parte do primeiro livro. Don Quijote e Sancho Panza são duas criações magníficas, donos de idiossincrasias e profundidades inigualáveis, funcionando por diversos movimentos que os fazem ser arquetípicos em praticamente todas as frontes: no idealismo, na amizade, na confiança, na ingenuidade, na iconoclastia fantasiosa, no valor, que, afinal, os dois possuíam e possuem, pois não morrerão jamais, vivendo com muita justiça a fama de serem dois dos mais famosos tipos da literatura em todos os tempos.

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Seguindo na leitura de Don Quijote, o caráter insólito de várias personagens me chama a atenção. Há alguns fenômenos peculiares que ocorrem com elas, e isso lhes dá uma dimensão muito particular. Alguns exemplos:
- Todos que zombam de Don Quijote gostam de ridicularizá-lo tratando-o por grande cavaleiro e a Sancho por exímio escudeiro; mas, velados na sua hipocrisia, favorecem a imaginação dos dois companheiros, e assim acabam tratando-os melhor do que se simplesmente desmentissem seus credos. Há uma cena na casa de duques, em que Don Quijote e Sancho são levados a crer, de olhos vendados, numa farsa de artifícios teatrais; não desconfiando da peça que lhes é pregada, eles terminam a tarefa com grande alegria por fazê-la chegar ao bem sucedido término. Então eu questiono: o que fizeram a eles é moral? Porque no final das contas eles ficaram muito satisfeitos, e cônscios do valor de sua jornada e ação.
- Os delírios de Don Quijote não me parecem ser tanto fruto de loucura, mas de uma percepção distorcida da realidade. No fim das contas, ele de fato tenta consertar os tortos do mundo e ajudar aos necessitados, mesmo que para isso corra o risco de sofrer a incompreensão do mundo que o julga anacrônico e estapafúrdio. Mas o que é mais errado, ser um cavalheiresco cavaleiro andante numa época errada ou ser injusto, vil e sórdido como todos que se divertem tratando-o como uma aberração digna de risadas?
- Sancho por vezes tem seu amo como louco, outras vezes é reputadamente tido por muitos como ainda mais fora do juízo que seu mestre. Mas para qualquer efeito ele está sempre a postos, e é injusto tratá-lo como um simplório mentecapto, quando ele demonstra crescer a cada aventura, até falando de maneira mais polida, sonhando com grandeza, trazendo a lógica humilde da vida prática a situações que são descritas de maneira tão ímpar por Cervantes que somos até gratos a Sancho por ele nos lembrar que nada é o que parece (ainda que ele mesmo acredite no contrário, por vezes, como no caso do singular encantamento de Dulcinea).
- Há que se destacar a beleza inesperada dos conselhos que Don Quijote dá a Sancho quando o fiel escudeiro está prestes a finalmente tornar-se governador de uma ilha.
Minha leitura acaba provavelmente no fim do mês. Mas tudo isso cavalgará comigo para sempre no Rocinante imortal da minha lembrança.
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Eu estou no fim da leitura de Don Quijote, a menos de cinqüenta páginas do término, e a sensação é dúbia: por um lado sinto-me extremamente feliz por ter lido uma obra tão linda e fascinante, e por outro é como se eu estivesse deixando uma parte de mim com a leitura. Acompanhei durante mais de três meses os devaneios do fidalgo e seu escudeiro, os dramas e comédias de que foram vítimas e também a vida de mil pessoas com que se depararam. E aí acabo assim, numa semana qualquer, já pensando no próximo livro a ler. Don Quijote morto mas imortal.