quarta-feira, 11 de julho de 2012

Bórgia

Li e reli muitas vezes, há alguns anos, os dois primeiros volumes da série Bórgia, escrita por Alejandro Jodorowsky e ilustrada por Milo Manara. Aliás, cheguei até a escrever brevemente sobre eles, num texto hoje desatualizado: aparentemente, segundo puxo da memória e leio em alguns sites, a ideia da saga era concebida como uma trilogia. Ocorre que Jodorowsky e Manara acharam por bem se expressar em mais um tomo, e acabei me afastando da série enquanto aguardava o demoradíssimo terceiro volume. Demoradíssimo porque eu era impaciente e acreditava que dois anos eram uma eternidade...

De todo modo, comprei há algum tempo (seis meses? Um ano?) o terceiro volume, e, aguardando o quarto e último, resolvi não prosseguir na leitura até completar de vez a série. A ocasião se fez semana passada, quando finalmente adquiri o desfecho da história, feito ano passado, e separei algumas horas (intercaladas) num dia para lê-la de cabo a rabo, continuamente, como um livro. Foi uma leitura árdua, pesada, angustiante. Era difícil esquecer tudo que acontecia numa página e virar para a seguinte como se ainda houvesse alguma esperança.
A leitura simplesmente me extasiou! "Bórgia" era ainda mais impressionante do que eu recordava. É difícil achar um momento de calmaria no meio de tantas perversões e monstruosidades e sujeiras e crimes, e não foi apenas uma vez que senti uma tontura, uma vertigem quase física, um nojo e indignação insuportáveis. Jodorowsky não fugiu ao mais grotesco e sórdido para denunciar os horrores da ignorância, do poder corrupto, da ditadura moral e religiosa de uma era que infelizmente não parece alegórica ou extinta.

Manara tem aqui um de seus grandes momentos como artista, se não o melhor. Se em trabalhos como "O clic" e suas continuações seus roteiros de próprio punho demonstravam uma fragilidade narrativa algo constrangedora (com poucas exceções), é trabalhando com textos de outros autores que Manara demonstra também seu gênio, colaborando para fazer de obras tão díspares como "El Gaucho" (escrita por Hugo Pratt) e "Viagem a Tulum" (roteiro de Fellini) trabalhos fascinantes e imprescindíveis. Em "Bórgia" ele revela seu talento com a arquitetura, com o sombrio, com a fábula de morte e cinismo, passando muito além do rótulo de "desenhista de mulher pelada". Reconfortante um artista consagrado procurando ainda novos caminhos de expressão, e quem conhece Manara por suas obras essencialmente eróticas terá uma (grata) surpresa com sua parceria com Jodorowsky.

Era difícil mexer com uma saga de tamanho peso histórico "anterior" a qualquer romantização e releitura, e Jodorowsky e Manara conseguiram lidar à perfeição com os Bórgias, os papas e cardeais, Savonarola, Maquiavel, Leonardo da Vinci e todo o contexto de depravação, pestes, desespero, ausência de comprometimento com qualquer coisa positiva, perseguição a credos, descaso com a miséria, extermínio da cultura questionadora... No final fica a desoladora certeza de que é mesmo impossível enxergar uma distância entre a Roma da baixa Idade Média e o mundo de hoje: o terror só muda sua roupa, a maldade humana é perene.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Grandes animadores: Paul Grimault

O francês Paul Grimault dedicou praticamente toda a sua vida à animação, e no entanto não fez mais que uma dúzia de obras. Realizador bissexto, alguns de seus trabalhos possuem entre eles intervalos de cinco, dez, quinze anos (ou mais!). Creio que não apenas a evidente falta de incentivos (financeiros, críticos etc.) ocasionou esse diminuto corpo de trabalho, mas também uma consciência de integridade inabalável: é melhor legar poucas e boas obras do que inundar a carreira com mediocridades. Paul Grimault seguiu esse princípio e sua fama se deve a seu honesto talento, livre de concessões e pressões tolas.

As animações que dirigiu, entre 1931 e 1980 (cinquenta redondos anos), são bastante reconhecíveis pela delicadeza da moral, o traço entre o cartum e o lírico, a engenhosidade das tramas e a simpatia das personagens: crianças, apaixonados, loucos, suas criaturas são pequenos modelos de comportamento em um mundo que as hostiliza mas que elas enfrentam e vencem, impondo com certa doçura uma ordem mais adequada.

Em 1988 seus curtas foram agrupados em um filme com dedo do grande diretor Jacques Demy (ele mesmo bastante sensível aos anseios da narrativa infantil, como demonstrou no seminal "Pele de Asno"), chamado La table tournante. Também ficou conhecido seu Le roi et l'oiseau, longa em que adapta Andersen e com o qual encerra suas atividades; o longa se encontra no YouTube, bem como quase todos os seus curtas, dos quais uma amostra está abaixo.





segunda-feira, 9 de julho de 2012

Sherlock

Sherlock Holmes é certamente uma das mais célebres figuras ficcionais de todos os tempos. É difícil não encontrar alguma citação a pessoa inteligente ou detetive brilhante sem referenciá-lo de alguma maneira.

Mas ao mesmo tempo Sherlock Holmes é uma das criaturas ficcionais mais mal representadas em adaptações. A questão cuidada é apenas a da aparência, então vemos sujeitos altos e magros, com nariz marcante, gorro, capa e um cachimbo. Sua apresentação física é tão estilizada que já nem se preocupam mais em ler as histórias originais de seu criador Conan Doyle — o cachimbo do detetive nunca foi curvo em texto algum, por exemplo.

A primeira aparição de Sherlock se deu no magistral romance "Um estudo em vermelho", publicado em 1887. Nesses cento e vinte e cinco anos, uma infinidade de peças, filmes, programas televisivos, quadrinhos e todo tipo de mídia já se apropriou das personagens de Doyle, mas a maior parte com preguiçosa indolência e fracasso na caracterização de Holmes como mestre na dedução e lógica: quase todo mundo prefere ficar nos velhos clichês da roupa, da lupa e da ambientação superficial, com o fog londrino, o dr. Watson e a casa na rua Baker, 221B.

Até mesmo o mais famoso Holmes das telas, Basil Rathbone, oferecia um pálido arremedo do gênio. Ele praticamente se resumia a disfarces tolos e raciocínio primário, sem extrair o evidente daquilo que a todo mundo parece incompreensível ou invisível. Era um Sherlock Holmes medíocre, que em nada se aproximava da incrível capacidade do detetive de Conan Doyle.

Até que surge, em 2009/2010, um novo Sherlock. Encarnado por Benedict Cumberbatch, o Holmes da série televisiva Sherlock aparece atualizado, vivendo no mundo globalizado contemporâneo, tendo um site, usando SMS, assessorado por um dr. Watson (um também iluminado Martin Freeman) mulherengo, que tem um blog, é sarcástico e amargurado e precisa a toda hora avisar que não, não namora Sherlock Holmes. Talvez muitas pessoas conservadoras tenham se arrepiado ao ler essa descrição, e também deve haver quem, assustado pelo conceito de modernidade do novo Sherlock, decida simplesmente passar longe disso tudo. Erro terrível: o novo Sherlock é o verdadeiro Sherlock Holmes, finalmente despontando após décadas de adaptações rasas e formulaicas!

Com apenas meia dúzia de episódios (de uma hora e meia cada) feitos até o momento, "Sherlock" apresenta Holmes e Watson às voltas com conspiradores, serial killers e todo tipo de crime que existia na Inglaterra vitoriana e ainda existe. Muito inteligentemente, "Sherlock" recusa a transposição literal das histórias de Conan Doyle e busca sua própria identidade: assim, os planos do submarino Bruce-Partington viram planos para um MÍSSIL, e Irene Adler, Lestrade, James ("Jim") Moriarty e Mycroft Holmes todos possuem a dubiedade necessária para representar adequadamente tramas com espionagem, golpes de Estado, terrorismo e outros temas atuais. É portanto uma série que utiliza a fonte original como inspiração, e não como mera cópia.

Mas o grande destaque é a dupla Holmes e Watson, inquestionavelmente. O Holmes de Cumberbatch é a minha ideia perfeita de um Holmes legítimo e crível: sua obsessão, seu perfeccionismo, suas manias e seu nervosismo, seu talento gigantesco em resolver problemas aparentemente insolúveis, tudo isso é bem impressionante e seu retrato é fascinante. Do mesmo modo, o Watson de Freeman é um Watson independente, inteligente na medida para ser o digno parceiro e amigo de Holmes, decidido, algo intrépido e considerável "elo" entre o mitico/divinal (Holmes) e o mundano/comum (todas as outras pessoas). A relação entre eles, a confiança, a amizade e o evidente respeito, a série mostra essas características com naturalidade e força, e se os atores escolhidos não fossem tão bons com certeza "Sherlock" não seria um empreendimento tão feliz.

Com decisões interessantes para evitar os truques de transposição literária, "Sherlock" utiliza criativamente flashbacks, montagem truncada e direção versátil, apta a seguir vários estilos apenas para fazer funcionar a trama narrada. Ainda que por vezes os recursos empregados pareçam algo desnecessários ou mal ajambrados, é de se louvar a iniciativa de fugir da tradicional representação de diálogos, de exposição verbal, da adaptação ao pé da letra dos livros. "Sherlock" é uma bela série que merece ter muito sucesso nos anos que (esperamos) se seguirem.

Mix das músicas do programa:



P.S.: Um dos quadrinhos que homenageiam/parodiam Sherlock Holmes está nas bancas: trata-se do Almanaque do Mickey nº 8, com "o maior detetive de Londres" Sir Lock Holmes!

domingo, 8 de julho de 2012

Sacarrolha

Se o Brasil tem um defeito de que não se pode nunca escusá-lo, esse defeito é o de não preservar sua cultura. Inúmeros filmes, programas televisivos, discos e livros estão totalmente relegados ao ostracismo, às cópias perdidas, aos garimpos ocasionais em sebos. Com quadrinhos, a coisa não é diferente. À parte exceções cada vez mais raras, não cuidamos dos nossos artistas e personagens. Ao contrário de tantos clássicos americanos e europeus, em nosso país não temos praticamente nenhuma edição integral da obra de nenhum autor, por mais importante que seja. Não há organização, financiamento e interesse capazes de publicar as obras completas de Henfil, Laerte, Ziraldo. Isso para ficar nos nomes mais conhecidos! Quadrinhos no Brasil ainda são tratados com lamentável negligência.

Uma pequena (mas substancial) mudança nesse quadro se dá com o lançamento do Almanaque Sacarrolha, compilando um pouco da história de um personagem histórico que está completando quarenta anos oficialmente em 2012. Sacarrolha é uma criação do "italiano carioca" Primaggio Mantovi, e fez muito sucesso nas bancas durante curtos mas marcantes anos. Vendia dezenas de milhares de exemplares todo mês, bem mais do que a maior parte dos álbuns e gibis que saem hoje por aqui. O relançamento do simpático Sacarrolha é talvez a publicação de mais importante resgate nacional no campo dos quadrinhos este ano.

Sacarrolha é um palhaço que trabalha no Gran Circo Kabum. Em suas cômicas histórias um pouco do mundo do circo é mostrado no cotidiano de seus trabalhadores, do chefe ao mágico, do atirador de facas ao domador de feras. O circo, desde sempre, foi um excelente palco (literalmente) para ambientar certas emoções humanas, e grandes autores como Fellini e Chaplin souberam aproveitar seu potencial e demonstrar que por trás das fantasias e dos números ensaiados existem almas que sofrem, que se alegram, que choram. Sacarrolha também dá a sua contribuição: suas peripécias vão bem além das tradicionais gags que estamos acostumados a imaginar quando falamos em ambientes circenses. Há histórias sobre amizade, ecologia e até mesmo estranhas aventuras envolvendo vilões, perigos e tudo que manda o figurino!

Primaggio escolheu como personagem, como ele mesmo sempre diz, um tipo universal, que é a mesma coisa em qualquer lugar do mundo. Sem deixar de ser brasileiro, seu Sacarrolha é mesmo um "cidadão do mundo", e não é difícil percebermos que ele não só é inalterável em outros lugares do planeta como também resiste muito bem ao tempo: o humor do palhacinho e sua turma continua bastante competente e a arte de Primaggio e sua equipe é muito desenvolta e interessante pelos ângulos, perfis, movimentos, sem falar na caracterização das figuras, como as mangas com punhos redondos que ostenta Sacarrolha — dado seu dinamismo, ele é quase um personagem de desenho animado que preferiu a tranquilidade das páginas impressas dos gibis.

Primaggio também é conhecido por seus livros sobre o faroeste cinematográfico e seu trabalho com a Disney. Mas seu nome deve estar cada vez mais associado a Sacarrolha, um trabalho tão pessoal e tão bonito, que finalmente parece estar tendo uma redescoberta à altura: este ano o troféu HQ Mix o homenageou sagrando-o como a efígie de sua estatueta, e o lançamento do luxuoso Almanaque Sacarrolha é um tributo mais do que devido. Esperamos que a volta da trupe do Gran Circo Kabum seja apenas uma de muitas ações feitas para preservar a memória do gibi nacional, e que quando ouçamos falar de "palhaçada" em algum assunto envolvendo quadrinhos brasileiros só nos venha à cabeça as divertidas confusões do Sacarrolha.

Atualização (20/12/2012): Primaggio Mantovi gentilmente enviou-me este belíssimo cartão de boas festas estrelado pelo querido Sacarrolha: