terça-feira, 29 de maio de 2012

Ilustradores de Lobato

Às vezes me pego admirando certas ilustrações dos livros infantojuvenis de Monteiro Lobato e penso como parte substanciosa da história da literatura para jovens brasileira é descrita por esses grandes e valorosos artistas, que demoraram muito para serem (parcialmente) reconhecidos pela crítica. Comentando especificamente os meus favoritos, vamos a imagens:

ANDRÉ LE BLANC fazia personagens com um acabamento mais rústico e um traço muito bonito e memorável. Gosto muito da sua Emília de olhos perpetuamente deslumbrados, cílios de retrós, a cabeça grande e meio desproporcional (como a de um bebê, ou de uma boneca antiga com cabeçona de vinil), o corpinho franzino. Le Blanc também ilustrou muitos outros autores e também histórias em quadrinhos, tendo sido o desenhista de algumas aventuras do Fantasma (de Lee Falk) e assistente e colaborador de ninguém menos que o mitológico Will Eisner! Um breve e bom material sobre a carreira do ilustrador pode ser visto aqui.

BELMONTE é bastante celebrado por seus cartuns e charges de sátira política e de costumes, e de fato seu traço é muito peculiar e engraçado. Sua Emília é uma bruxinha perfeita, com certos trejeitos de aranha (pernas finas, cabeça com cabelos revoltos), é impossível imaginá-la na "vida real". Ponto para ele, é maravilhoso alcançar uma forma de expressão tão própria de uma ideia, sem se deixar influenciar por "realismos" inúteis. O excelente blog Chocarrice coletou incríveis ilustrações de Belmonte para o clássico "Emília no País da Gramática", nas quais pode-se ver o brilhante e refinado uso da estilização em prol do humor do desenho. Notem a aproximação com a linguagem dos quadrinhos, ao retratar sons e palavras/expressões, onomatopeias etc. como pessoas. Seu trabalho me lembra por vezes o também incrível Al Hirschfeld.

Jurandir Ubirajara Campos, o J. U. CAMPOS, teve sua participação na obra lobatiana ampliada para a esfera pessoal: ele foi genro de Lobato! Mas sua obra é impecável e permanece ainda hoje uma magnífica amostragem do que se pode fazer nessa mídia de desenho ilustrativo para obras infantis ou infantojuvenis. Entre o naïf e o deliberado efeito estético, as obras de J. U. Campos possuem cores que saltam aos olhos e permitem uma nova visão das personagens e dos ambientes em que se inserem. O blog Chapéu pensador agrupou algumas dessas ilustrações, e ao observador atual é permitido ficar plenamente estarrecido com os simultâneos anacronismo e contemporaneidade das figuras, como um ilustrador de Jules Verne ou de Emilio Salgari nascido no século XX.

MANOEL VICTOR FILHO é ainda um dos mais queridos ilustradores de Lobato. Pudera: são dele as capas mais recentes da Brasiliense, que publicou até há pouco a obra lobatiana para jovens completa — e hoje ainda se encontram facilmente os volumes à venda em livrarias e sebos, inclusive os que a Editora Globo negligentemente não relançou, como "Geografia de Dona Benta". É dele a Emília com vestido branco de bolinhas vermelhas, pezinho amarrotado (afinal, ela passa boa parte da obra de Lobato sendo uma boneca de pano), Narizinho de sainha curta arrebitada e grande laço enfeitando os cabelos, a Dona Benta magrinha e a Tia Nastácia enorme de bondade e tamanho. Cansei de ver em escolas e bibliotecas os livros com a turma do Sítio em sua versão de capa dura com belíssima arte de Manoel Victor. No blog Universo paralelo pode-se ver alguns momentos de seu trabalho, inclusive a imagem definitiva da iconoclastia lobatiana: Emília botando a língua pra fora, atitude de desafio, crítica e irreverência.

Nos anos mais recentes, gosto bastante da equipe liderada por JORGE KATO (famoso artista Disney brasileiro, falecido há poucos meses) na coleção editada pelo Círculo do Livro na década de 1990. Esses volumes tiveram a curiosa distinção de terem a arte influenciada não só pelos ilustradores lobatianos anteriores como pelo programa televisivo inspirado nas aventuras do pessoal do Sítio de Dona Benta, exibido na Globo entre 1977 e 1983. Então o Príncipe Escamado parecia mais com um humano, o Doutor Caramujo era o arremedo perfeito do traje usado na telinha e a Emília tinha mil cores no cabelo e nas roupas. Entre os artistas que ilustraram os livros nesse período temos os também disneyanos Luiz Podavin e Eli Marcos Leon. São desenhos bonitinhos e que possuem bastante originalidade e identidade. Alguns deles podem ser vistos aqui.

Gosto muito também do trabalho realizado por outro artista disneyano brasileiro, MOACIR RODRIGUES SOARES, na Coleção Rocambole. São livros com pequenos trechos das histórias do Sítio de Lobato, com glossário e grandes ilustrações. Eu acabei me desfazendo dos livros, mas tenho tanto registros (sobretudo desenhos) que mostram como eles me marcaram na infância que pretendo readquirir boa parte deles, percorrendo os sebos por aí. Destaco o Príncipe Escamado, que eu adorava desenhar, e o Visconde de Sabugosa com sua eterna marca de "coroa falsa" por baixo da cartola (por muito tempo só o retratei assim). Outros ilustradores participaram da coleção, mas o que me marcou mesmo foi o traço do Moacir. No blog Sala de leitura pode-se conferir um livro dessa coleção.

Há muitos outros ilustradores da obra de Monteiro Lobato, mas de uma maneira geral esses artistas acima são não apenas os que considero os melhores que já se dedicaram a esse trabalho como são os responsáveis por uma influência muito grande na minha vida e na minha visão de desenho, ou pelo menos com relação à caracterização dos geniais personagens de Lobato. Esta é uma pequena carta aberta de agradecimento a todos esses mestres subestimados.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Pedras rolando

A fama nem sempre é suficiente.

Beto Guedes é conhecido, mas ainda não foi devidamente apreciado. Já em seu primeiro disco, intitulado incrivelmente "A página do relâmpago elétrico", temos um compositor consciente do valor das linhas melódicas dos (vários) instrumentos e gêneros que o álbum abrange, indo do mais singelo choro mineiro — de seu pai Godofredo Guedes, brilhante autor de obras resgatadas recentemente também pelo filho de Beto, Gabriel (o garotinho que vai em direção ao pai na terceira capa aqui exposta) — a um tipo bastante peculiar de rock progressivo. Força expressiva incomum, o disco é um petardo, e não seria o único trabalho memorável do jovem de Montes Claros.

Ao longo de sua carreira, Beto Guedes fez parcerias com seus amigos do Clube da Esquina (Milton Nascimento, Lô Borges, entre outros) e com gente como Caetano Veloso e Zizi Possi, mas sua carreira é bastante única e pessoal. Apostando desde o começo em uma valorização de certas tendências instrumentais, é comum acharmos em seus discos, sobretudo os primeiros, faixas sem letras e vocais (ou em que a parte cantada é mínima), e nelas percebermos a variedade de estilos advindos de muitos estilos aparentemente inconciliáveis: baixo junto a piano, bandolim com guitarra elétrica, flauta simultânea a teclado eletrônico etc. E com um adendo: o próprio Beto é quem toca a maior parte disso tudo.

Apesar de ter vários clássicos embalando gerações há décadas (Amor de índio, Maria solidária, a eternizada por Elis Regina O medo de amar é o medo de ser livre), sua proposta mais autoral o afastou um pouco do palco que permite a artistas mais "mainstream" aparecerem em programas televisivos tradicionais, e a mídia convencional não dedica nunca muito espaço a quem faz arte pelo menos um pouco fora dos padrões. Resta o consolo de uma pequena discografia, praticamente impecável, com um incrível mostruário de composições inspiradas, que dão a quem as escuta a impressão de sentir a brisa tranquila de uma tarde de Minas passando bem ali na janela...









domingo, 27 de maio de 2012

O mistério dos signos

Sou leitor dos gibis Disney há mais de quinze anos. À parte certos gibis comprados aleatoriamente na infância, posso dizer que comecei a lê-los "aprofundadamente" e com interesse real de colecionismo lá em meados do longínquo 1995, quando eu tinha oito anos. Nem sempre os comprei fielmente todos os meses; quando as asssinaturas foram extintas no começo dos anos 2000 e começou uma onda de gibis finíssimos, decepcionantes e repletos de repetecos (eu, que sempre comprei muita coisa em sebo, já tinha quase tudo), parei por um tempo.

Ano passado retomei a compra dos gibis regulares (pois os especiais nunca deixei de comprar) e de lá pra cá muita coisa foi lançada, um cenário cheio de falhas mas ainda assim muito melhor do que o que estava imperando quando debandei desiludido e me concentrei em Bonelli Comics e outros quadrinhos. Mas na verdade este texto não é sobre nada disso. É sobre uma minissérie Disney (ou história seriada) que finalmente consegui completar e li esta semana: "O mistério dos signos".

A Disney é historicamente conhecida por suas histórias curtas. De Carl Barks a Paul Murry, de Tony Strobl a Ivan Saidenberg, a virtual maior parte dos artistas do estúdio sempre se caracterizou por fazer histórias geralmente curtas, sem continuidade, fechadas. Ainda que Floyd Gottfredson tenha sido o pioneiro em fazer diferente, com longas e geniais tramas de aventura, ação e noir com o Mickey, e que por vezes tenhamos visto histórias mais longas como "A saga de Tio Patinhas" (de Don Rosa) e "O destino do Zé Carioca" (de Genival de Souza, Aluir Amâncio e José Wilson Magalhães), a tradição é mesmo tudo fazer tudo num espaço reduzido, sem pretensões de "arcos". O que vem paulatinamente sendo alterado.

Quem foge desse padrão não são os americanos, nem os franceses, nem os holandeses, nem os dinamarqueses e muito menos os brasileiros: são OS ITALIANOS! Eles que possuem essa capacidade de ser criativo a qualquer custo, e criam sagas e personagens e tramas malucas, com traços experimentais, com um dinamismo visual que foge totalmente aos padrões já convencionados por outros clássicos quadrinhos da casa. Eu quero falar de um grande momento na produção italiana: "O mistério dos signos", que aqui chegou como uma minissérie em três partes, iniciada em dezembro de 1990 e concluída em fevereiro de 1991.

Para quem acompanha um pouco a história dos quadrinhos Disney e sua repercussão na internet, "O mistério dos signos" é uma história que nunca saiu da memória dos leitores e uma das campeãs em pedidos para republicação. A Editora Abril andava anunciando que ia lançar uma edição de luxo com toda a minissérie republicada; eu, pessoalmente, no passo em que as coisas estão, não tenho interesse em adquiri-la se for simplesmente a reimpressão das aventuras, pois já as tenho em uma edição com brilhante papel e qualidade gráfica mais que satisfatória. Mas sem dúvida vinte anos é muito tempo de ausência e mais pessoas devem conhecer adequadamente essa excepcional saga.

Como o mote da história é recuperar doze peças inspiradas em símbolos zodiacais, espalhadas pelo mundo há gerações, conseguir finalmente a única parte da saga que me faltava (justamente a primeira!) foi algo que encarei romanticamente como uma missão parecida à dos amigos de papel: assim como a peça da história só produz efeito se todas as peças fossem remontadas, também minha leitura só poderia ser completada quando eu recuperasse todas as três partes da minissérie!

A trama em si se dá quando Mickey e Pateta (que completou felizes OITENTA anos anteontem!), mais uma vez viajando no tempo a pedido dos cientistas Zapotec e Marlin, descobrem uma tal roda zodiacal, com poderes de desbravar o futuro, e começam a correr mundo atrás dos herdeiros contemporâneos dos "amuletos". Após algumas passagens, deparam-se com Tio Patinhas e seus sobrinhos, e dividem as buscas entre a "turma dos patos" e a "turma dos ratos". Crossovers nos quadrinhos Disney NÃO são frequentes, e só me lembro de ver Patinhas e Mickey juntos em um desenho animado natalino de 1983... E com certeza nunca havia visto Mickey e Maga Patalójika cara a cara! O desenvolvimento das personagens (e como elas se relacionam), o peculiar humor, o sentido da aventura e os desenhos são primorosos do começo ao fim. E retomando um pouco o que disse no começo: após anos e anos lendo Disney, é difícil eu me surpreender com alguma coisa nesse universo; isso não impediu que "O mistério dos signos" me deixasse totalmente impressionado.

P.S.: Para quem achou estranha a baixa frequência dos crossovers em quadrinhos Disney, explico: Mickey e sua turma NÃO moram em Patópolis, como a Editora Abril erroneamente traduz há décadas. Por isso, ele, Donald, Tio Patinhas e afins não são vizinhos e mal se veem quando estão às voltas com suas aventuras...

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Gallsbourg

Escusado reforçar a importância de Serge Gainsbourg para a música popular (não só francesa) do século XX. Mas, como o homem pariu dezenas de discos e centenas de canções, fica um pouco difícil separar algo nesse bolo de obras ímpares e entender tantas tendências. Uma boa maneira é dividir certas coisas por suas intérpretes, o que reflete sua inspiração no momento: hoje não é a vez de Brigitte Bardot, Jane Birkin ou Juliette Gréco, mas FRANCE GALL.

A primeira vez que ouvi France Gall, foi, curiosamente, em uma fase bem distante desses anos de mocidade: no delicioso "Amores parisienses" (On connaît la chanson), de Alain Resnais, France Gall era uma das cantoras do primoroso set list, com uma canção intitulada Résiste. Apenas tempos depois fui procurar mais coisas dela, e não recomendo a ninguém essa demora.

Mesmo não esquecida, hoje France Gall está aposentada e longe dos holofotes, decisão tomada após certos dramas pessoais em sua vida; mas na década de 60 a jovem francesa era um fenômeno: sua vozinha estridente de adolescente era um charme sempre requisitado em programas televisivos, rádios e eventos culturais e musicais em gerais. Sua figura ajudava: era uma bela moça com um ar de genuína inocência (o que, parece, era realmente verdade). Hoje já estamos acostumados à erotização das lolitas, mas ainda é de se notar como sempre a colocavam para cantar em trajes colegiais, as pernas nuas, sainhas e uniformes fetichistas. Vários desses "footages" estão preservados, o que demonstra como exploravam não apenas o talento vocal de France Gall mas o sensualismo involuntário de seu delicado corpo.

Em meados da referida década, France Gall firmou uma insólita parceria com Gainsbourg (como pode ser visto na bela cinebiografia de Gainsbourg dirigida por Joann Sfar). Talvez seja difícil perceber a princípio o quanto eles eram contrastantes: ela, menininha virginal, bobinha e tímida; ele, conquistador, desbocado e malicioso. O fato é que essa dupla cunhou algumas das mais memoráveis canções francesas das últimas décadas, sendo que ainda hoje elas impressionam pelo vigor que as tornam muito, mas muito superiores à média que France Gall costumava produzir. A despeito de toda a polêmica gerada por "Les sucettes" (canção em que Gainsbourg introduziu deliberadamente duplos sentidos para parecer que a moça cantava nos versos experiências de sexo oral!), qualquer música com esse selo de parceria vale seu peso em ouro. Seguem algumas dessas parcerias, não para efeitos de prova, mas sim como puro deleite para os ouvidos.









quarta-feira, 23 de maio de 2012

Ciência é ficção

Ao contrário de gente que só se entusiasma com coisas "épicas" (no sentido bem batido e questionável do termo), sou daqueles que acha que coisas por muitos consideradas inócuas podem ser bem mais fascinantes que espetáculos artificiais. Então eu gostaria de tentar fazer um pouco de justiça a um grande "mostrador" dessa beleza que está sempre aí para vermos e no entanto nunca a conseguimos enxergar: Jean Painlevé. Um grande registrador, que passou boa parte de seus quase noventa anos a perenizar em dezenas de momentos certas imagens de insuspeita perfeição.

Quando se fala em registro da vida submarina, só lembramos de Jacques Cousteau. E esquecemos deste homem, que retratou em curtas e médias metragens apaixonantes tudo que se pode falar de belo e impressionante dessas criaturas que estão todos os dias vivendo suas vidinhas molhadas. Ver seus filmes é sair encantado pela vida, pelas coisas que acontecem e não nos damos conta, é se embasbacar com as texturas, as cores e os movimentos pulsantes de seres que ignoramos ou fingimos desconhecer (ou, pior, desconhecemos realmente).

Na verdade, Jean Painlevé não filmou apenas seres aquáticos. De pombos a morcegos, esse visionário artista-cientista passeou pelos céus, pela cena política francesa/europeia/mundial e até filmou uma experimental cirurgia canina! Mas quando ele filmava medusas, polvos, cavalos-marinhos, pólipos, anêmonas, camarões e ouriços é que estava em seu máximo da expressão: são documentos tão seminais para o estudo e compreensão desses seres como certas obras de Norman McLaren e Carlos Saura o são para a música e o ballet.

Por mais que seja sempre um prazer ver essas criaturas tão distantes de nós (em constituição e em geografia) nos canais da televisão, nas páginas lindamente fotografadas da National Geographic e nos inúmeros documentários já feitos sobre elas, observar a obra de Jean Painlevé é sentir o gosto novo e saboroso de um novo mundo (por vezes) estranho e fortemente impressionante; uma comparação mais ou menos adequada se me afigurou agora: Jean Painlevé era um pouco o Winsor McCay do cinema documental, e nós somos seu Little Nemo percorrendo reinos e sonhos de encanto e desconhecido.





domingo, 20 de maio de 2012

Maluquinho em quadrinhos

Todo mundo conhece o Menino Maluquinho. Mas ele é um daqueles casos de personagem mais famoso pelo merchandising que por outra coisa. Não que seus livros ou seus filmes e afins sejam pouco conhecidos, mas é o mesmo caso de Peanuts: conhece-se a figura (um garoto com uma panela na cabeça), mas sabe-se muito pouco da essência dos personagens. Assim como Mickey, Maluquinho é uma estampa conhecida, mas uma ínfima parte dos que reconhecem seu vulto conhece realmente a sua história, o que ele fez de importante.

O que pouca gente conhece realmente (pelo menos hoje) é como o Maluquinho é genial nos quadrinhos. Não em todos, que fique claro; em sua última aparição nas bancas, poucos anos atrás (a mesma que hoje se encontra nas livrarias em alguns álbuns com compilações encadernadas), a editora Globo, um punhado de artistas medianos e a praga do convencionalismo na narrativa de humor infantil tornaram o então Maluquinho "mano" (calças largas caindo) dessa fase um pálido arremedo do que já foi um dia.

Eu sempre achei o Maluquinho um dos melhores personagens dos quadrinhos brasileiros. Ele não tem o respaldo crítico que um Henfil e um Laerte (muito justamente) possuem, mas esbarramos na velha questão do preconceito com as coisas ditas infantis. O que não impede de constatarmos com tristeza como a insossa Mônica de Mauricio de Sousa, justamente um quadrinho (pelo menos hoje) pouquíssimo merecedor de atenção, conseguiu certa "blindagem" contra a depreciação galopante, sendo um quadrinho sempre homenageado e republicado, comentado, lembrado. E mais do que isso: respeitado, não ignorado.

Aí também temos a nossa velha chaga brasileira de não preservar nossa própria cultura. Ora vejamos: os quadrinhos do Maluquinho (nessa encarnação que comento hoje; houve outras, como dei a entender acima) foram de 1989 a 1994, totalizando setenta edições. E NUNCA foram republicados, salvo algumas histórias em uma série de quatro livros temáticos da Publifolha, e posteriormente quatro gibis fac-similados por uma editora independente chamada Terra, há coisa de dez anos. Hoje ainda é uma dificuldade extrema para conseguir encontrar esses gibis. Em São Paulo pelo menos há o consolo de a coleção completa estar disponível para consulta e/ou empréstimo no Centro Cultural da Vergueiro (fica a dica, pois comprar edição por edição em sebos virtuais é um trabalho de paciência e de garimpo, além de os preços nem sempre ajudarem).

Por que elogio tanto essa fase do Maluquinho? Se só pegarmos estes cinco ou seis exemplos que coloquei aqui para ilustrar, é possível entender um pouco da minha euforia (ou assim espero!). Primeiro, que traço expressivo e bonito! Claro que não foi Ziraldo quem fez cada história, era uma equipe que assinava em nome dele, como o que o Mauricio ainda faz hoje (o artista mais famoso que fazia o Maluquinho, inclusive assinando com seu nome em algumas ocasiões, era o Mig). O resultado é um quadrinho que evidentemente é cartunesco, mas não simplesmente "deformado" como os da turma da Mônica. Há toda uma linguagem visual, com a movimentação das personagens no espaço, gestos cômicos ou de expansão, expressões dos mais variados sentimentos, sempre tudo muito bem retratado.

Além disso, o texto é perfeito. São crianças, mas que agem com malícia mesmo sendo inocentes, fazem piadas, são engraçadas, não são em absoluto apenas marionetes vazias falando textos de efeito, engessados. É de uma naturalidade cortante, e é difícil encontrar no quadrinho infantil uma força de comunicação assim. Nos exemplos é possível ver como Maluquinho fala, pensa, como se comunica com seus amigos e como isso é desenvolvido e mostrado ao leitor. Notem nas tirinhas o fino humor e a genuína graça, trabalho que chega mesmo a encantar de tão bem feito.

Ainda há muito que se falar sobre o Maluquinho em quadrinhos. Mas nas páginas que eu pessoalmente selecionei e fotografei dá para se ter uma ideia bastante precisa da qualidade do material. E tudo isso é apenas da fase FINAL da revista, após dezenas de edições excelentes. No meio dos anos 90 Maluquinho voltou às bancas em um de seus últimos momentos de brilhantismo, com uma revista intitulada simplesmente REVISTA DO MENINO MALUQUINHO, com o nome escrito todo espremidinho. Fica registrado o meu apreço por esse magnífico personagem e a torcida para que todos os seus grandes momentos ainda sejam devidamente valorizados. Até o Pererê, que tem uma perna só, tem conseguido pulos mais altos em sua carreira nas HQ e vem mostrando serviço com certos relançamentos ambiciosos e estudos sobre sua importância para o quadrinho nacional. Já está mais do que na hora de ser a vez do panelinha.

sábado, 19 de maio de 2012

Realeza

Consideradas "femininas demais" por certos espectadores, as princesas da Disney são importantes personagens das produções dos estúdios e representam de algum modo a evolução da condição da mulher, seus problemas e seu pensamento. Porque hoje vemos facilmente que a reprimida Cinderela pouco tem a ver com a voluntariosa Belle, e mesmo a "prisioneira" Rapunzel tem o espírito muito mais livre que a incrivelmente ingênua Branca de Neve. Do mesmo modo, apesar de a vida monárquica ser extremamente fútil e os reis serem em geral grandes inimigos do povo e totais desconhecedores das mazelas das sociedades que governam, as princesas Disney possuem bom caráter, humor, não têm preconceitos classistas e tampouco aqueles caprichos ilustrados por Andersen em seu célebre conto "A princesa e a ervilha".

É difícil precisar o quanto as princesas são importantes para a Disney. O primeiro longa animado do estúdio (e o primeiro longa animado já feito!) foi sobre uma (Branca de Neve), e o quinquagésimo também (Rapunzel); foi uma princesa que fez a Disney animada conseguir o feito de ser indicada ao Oscar (Belle) e foi uma que começou de vez a retomada que acarretaria obras-primas nos anos 1990 (Ariel); foi uma princesa que deu a forma ao primeiro parque de Disney, a Disneylândia (Cinderela), e foi uma princesa que quebrou o estereótipo vindo de Perrault, Grimms e outros célebres autores de contos de fadas referente à necessidade de as mocinhas reais serem todas brancas, europeias (Jasmine, e depois Pocahontas e Tiana; respectivamente princesas de origem árabe, indígena e africana).

A coisa chegou num ponto que até mesmo heroínas que nunca foram princesas foram "promovidas" a esse patamar simplesmente por estarem com o prestígio em alta: o caso clássico é Mulan (que consta até em kits com outras princesas Disney), mas até mesmo Mégara (esposa de Hércules), Jane, Esmeralda, Tinker Bell (Sininho) e Alice são consideradas princesas em alguns momentos. Fica aqui a minha crítica por princesas VERDADEIRAS como Faline (mulher de Bambi) e Nala (a sra. Simba) não fazerem parte do cânone "oficial" das princesas, apenas por serem animais. Mas não são elas casadas com reis? Forçando um pouco a barra, quem conhece longas animados da Disney pode até perguntar porque Lady Marian (uma raposa) não entrou no cômputo, já que era afilhada de um rei...

                                                                       Este post foi uma desculpa para eu mostrar minha admiração por essas personagens incríveis e seus filmes fascinantes, mas também é uma oportunidade para eu indicar alguns links com belas imagens, que merecem ser sempre visitados: o primeiro é the disney princess, de onde peguei essa Ariel "vamp" num cartaz vintage de "beach club", a singela imagem de Belle e a doce Jasmine encostada no incrédulo Aladdin; o segundo é petite tiaras, que descobri hoje e de onde tirei a capa com a Rapunzel, parte de uma coleção incrível e linda com as outras princesas (tudo agrupado aqui). Atenção para esses dois links, eles são constantemente atualizados e possuem imagens lindíssimas de releituras das princesas, cartazes, logotipos, gifs e também arte com outros personagens da Disney (como Pinóquio e Aristogatas).

E para encerrar, o grande animador Glen Keane fazendo uma "hand-drawn" Rapunzel belíssima:



Atualização (26/07/12): nova princesa Disney na área.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

We have met the enemy and he is us

POGO é considerado um dos melhores quadrinhos já feitos, mas no Brasil é um título desconhecido. Ignoro se já foi publicado aqui em alguma revista obscura, um fanzine ou coisa parecida. Mas nunca saiu como devia, em um livro próprio, nunca foi muito comentado e nem é referenciado por quem seja.

A primeira vez que ouvi falar de Pogo foi quando, ainda pequeno, li pela primeira vez "Os dez anos de Calvin e Haroldo", de Bill Watterson. Pogo é citado por ele, ao lado dos também seminais Peanuts e Krazy Kat, como um dos quadrinhos que mais o influenciaram. Mas para mim era um personagem ainda distante, não havia sequer uma ilustração para acompanhar a elogiosa análise (suponho que por razões de copyright).

Durante anos, Walt Kelly, o autor de Pogo, foi um nome importante para mim, mas um nome invisível; eu, fã da Disney desde garoto, já havia visto inúmeros trabalhos de Kelly sem o saber! Kelly fez muitas coisas para a Disney, e só há poucos anos, quando a Editora Abril publicou a obra completa de Carl Barks, pude ver com insistência seu nome creditado — como capista, no caso; autor de dezenas de capas de Donald, por exemplo. Além delas, ilustrou histórias e também trabalhou como animador em alguns clássicos inesquecíveis: ele anima parte do fabuloso "Fantasia", no segmento da Sinfonia Pastoral, e um pouco de "Dumbo" também. O imprescindível site Inducks lista todos os trabalhos de Kelly com os quadrinhos Disney.

Kelly saiu da Disney em meados dos anos de 1940, quando foi um dos famosos "grevistas" que levaram Walt Disney à loucura ao paralisarem seus estúdios (episódio narrado por Álvaro de Moya em seu livro "O mundo de Disney"). Por essa época ele criou Pogo, que estrearia sua própria tira no final dessa década. Pogo é esse bichinho engraçadinho que abre este texto, espécie de gambá (seu nome completo é justamente Pogo POSSUM, um tipo de "gambá" em inglês) que vive com amigos — animais silvestres, como tartarugas, corujas, ursos e jacarés — em um pântano e é protagonista de aventuras e confusões cotidianamente.

Mas o que esse quadrinho tem de especial, afinal?

É mais fácil reformular a pergunta: o que Pogo NÃO tem de especial?


Pogo possui um traço lindíssimo, apaixonante, repleto de detalhes e ainda assim fluido, ágil. Talvez por ter trabalhado com desenhos animados, o trabalho de Kelly nunca é estático, robótico: Pogo é uma tira de movimento, que não cansa os olhos e que entusiasma pelo ritmo. Mas não apenas isso — Pogo é um quadrinho satírico e que possui grande carga política, ao mesmo tempo em que se "disfarça" de infantil, pelo traço e pelos personagens fofinhos. É uma abordagem bastante especial: as crianças gostam da tira pelo aspecto cartunesco e pelo absurdo das situações, e os mais velhos admiram a crítica social e a inconformidade libertária de Kelly ao brincar com coisas inusitadas como a geopolítica universal (líderes mundiais já deram as caras nas histórias da turminha do pântano, seja como eles mesmos ou ocultos sob "inocentes" paródias).

Ao longo das décadas da série, Pogo, mesmo sendo uma leitura relativamente "difícil" e muito autoral, foi angariando crescente popularidade, chegando a ganhar produtos dos mais variados (bonecos, bottons, desenhos animados e inclusive discos, com o próprio Walt Kelly cantando!), merecendo até mesmo estudos psicanalíticos! Houve também citações como a do colega e amigo Al Capp (criador do clássico Li'l Abner, ou Ferdinando).



A influência de Pogo é enorme. Gente como Robert Crumb o aponta como obra-prima, Goscinny e Uderzo (os autores de Asterix) adotaram várias irreverências visuais vindas da obra de Kelly — como balões em que os diálogos das personagens são escritos em fontes diferentes e muito particulares de uma ideia, visão ou procedência de quem fala — e hoje ele figura em onze de cada dez listas dos maiores quadrinhos de todos os tempos. E enquanto aqui no Brasil ele segue anônimo, a Fantagraphics está em vias de lançar o segundo volume com todas as tiras reunidas, completadas por estudos, críticas, curiosidades e mil anexos.

O melhor texto que já vi sobre Pogo é também uma das melhores análises/críticas que já vi sobre um quadrinho, e foi feita pelo homem que me apresentou ao maravilhoso mundo de Walt Kelly: Bill Watterson. O texto se encontra na íntegra aqui, e é altamente recomendável.

Apesar de tudo, não tenho muita certeza se Pogo faria boa carreira em terras brasileiras, e a razão é muito simples: o idioma. O texto de Kelly, traduzido, perderia mil significados e significantes, pois se aproveita da força da expressão coloquial, de dialetos, de trocadilhos e elipses de linguagem, material essencialmente intraduzível. De qualquer modo, é necessário que os brasileiros conheçam Pogo e tenham uma ideia do que é possível fazer em tiras de jornal, veículo hoje sucateado pela profusão de artistas irrisórios.

Enquanto isso não é possível, o blog Whirled of Kelly é uma ótima fonte para quadrinhos e ilustrações incríveis de Pogo e todo o pessoal do pântano Okefenokee.

Atualização (19/05/12): Os amigos Pedro Bouça e Ben Santana me mostraram outra marca do alcance de Pogo, com esta homenagem feita por Alan Moore em seu Monstro do Pântano.

Atualização 2 (19/05/12): Como me esqueci de mostrar esta animação, dirigida por Chuck Jones? De qualquer modo, Walt Kelly não ficou satisfeito com o resultado:



Atualização 3 (20/05/12): Nikki Nixon avisou que Pogo saiu sim no Brasil! Foi na revista Patota, nos anos 1970.