quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Zé Carioca 70 anos

Já disse anteriormente que sou leitor de quadrinhos Disney desde a infância. Naquela época eu era um fã bem mais ávido por Zé Carioca do que nos anos seguintes, quando deixei o papagaio um pouco de lado. A razão é simples: eu já tinha a maior parte das histórias, pois nos últimos dez anos não houve nenhuma história inédita da ave malandra, salvo uma outra homenagem específica.

Então virei-me de vez para os patos e para os ratos. Além de um material extremamente mais abundante — afinal, as histórias do Zé são quase todas brasileiras, enquanto que os outros personagens são produzidos por vários países —, Donald, Patinhas, Mickey, Pateta e companhia nunca correram o risco de esgotarem suas tramas novas e engessarem suas revistas com repetições infindáveis e desesperadoras (como ocorreu com o Zé na triste última década).

A razão para o Zé sofrer nessa negligente situação é um amálgama de várias infelicidades simultâneas, que fizeram os quadrinhos Disney brasileiros passarem por reformulações iminentes visando a revertar sua estagnação e virtual cancelamento; as revistas acabaram sendo preservadas, com um acréscimo expressivo nas vendas dos últimos anos, mas encerrou-se de vez a produção artística de histórias feitas aqui. Até que ultimamente surgiu uma esperança.

Mas neste decênio Zé Carioca passou por maus bocados. O que é mesmo deprimente, considerando todo o (invejável) histórico desse nosso "conterrâneo americano", sua vida cheia de louvores e seu talento em entreter e divertir a todos por décadas a fio.

Afinal, quem é o  Zé Carioca? O papagaio verde foi criado pela equipe de Walt Disney em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, com os planos de aproximação dos ianques desejosos de expandir sua política da boa vizinhança e com isso aumentar seus mercados (a Europa, lembremos, estava bloqueada por Hitler e demais forças anti-EUA). Zé surgiu já em grande estilo, no clássico (animated feature, ou longa animado) Alô, amigos, dançando a "Aquarela do Brasil" com o Pato Donald, ensinando o desajeitado pato a sambar, ciceroneando-o pelo Rio. Zé fez tanto sucesso que apareceu em mais dois (!) clássicos do estúdio, Você já foi à Bahia? (onde forma um inesquecível trio com os caballeros Donald e Panchito) e Tempo de melodia. Para se ter uma ideia do que o Zé representa na história da animação Disney, ele aparece em tantos longas do cânone oficial disneyano quanto... Mickey Mouse! Com um detalhe: Mickey só emplacou seu terceiro clássico em 2000, com o segundo Fantasia, enquanto Zé já na década de sua criação saía na frente com suas três participações.

Como em muitos casos, do cinema para os quadrinhos foi um pulo: e Zé invade as páginas americanas dos jornais, por cerca de dois anos, tendo até mesmo o futuro "mickeyano" Paul Murry desenhando suas tiras — publicadas pela Editora Abril há algumas semanas, pela primeira vez no mundo em sua integralidade e num único volume. Essas primeiras aparições do Zé sequencial são simplesmente hilárias, com golpes e mentiras desenfreados e muito inteligentemente encadeados; só é de se estranhar como Zé Carioca não infartava após todas as vezes em que temeu ser desmascarado, pois foram inúmeras e constantes!

Alguns veem em Zé Carioca um estereótipo pejorativo do brasileiro, por sua folga, sua preguiça, sua vadiagem, sua manha, sua fissura com samba, futebol e feijoada. Mas personagem menos ofensivo não há: criatura simpática, inteligente e "gente boa" está aí. Quanto aos traços negativos que apresenta, ora, nunca se pretendeu afirmar que todos os brasileiros são assim: apenas o Zé é que é! Podemos ver nos dois volumes comemorativos de suas sete décadas, lançados pela Abril em outubro e novembro, uma grande variedade de traços de seu caráter, e quem o acusa por um ou dois deles só demonstra o evidente: não conhece a carreira do Zé em longas décadas de aperfeiçoamento.


A relação do Zé com a Abril é muito importante, pois foi sob o selo (e a infraestrutura) dessa casa que todas as histórias brasileiras do Zé (que são a grossa maioria do que se fez com o papagaio) foram desenvolvidas e lançadas. Então não foi difícil para eles selecionarem alguns momentos-chave na vida do penoso, como o surgimento de seu alter-ego de herói (Morcego Verde, abertamente inspirado no Morcego Vermelho do Peninha, também criação brasileira), suas fugas da Anacozeca (Associação Nacional dos Cobradores do Zé Carioca), sua relação com a namorada (Rosinha, periquita milionária filha do tucano Rocha Vaz), com os amigos (sobretudo o urubu Nestor, o pato Afonsinho e o sui generis [provavelmente um cachorro] Pedrão Feijoada), com os sobrinhos (Zico e Zeca, sendo este também um herói alternativo: o Paladino Implacável), os primos (Zé Paulista, Zé Queijinho, Zé Jandaia, Zé Baiano...), suas aventuras com os compañeros Donald e Panchito... Sobre esse trio, os volumes estão mesmo preciosos: há uma trama inédita italiana, uma releitura de Você já foi à Bahia? feita por ninguém menos que Walt Kelly e as duas aventuras (no maior sentido do termo) que Keno Don Rosa fez com os três amigos; sim, até mesmo o mítico Don Rosa, para quem apenas Carl Barks fez quadrinhos Disney dignos de atenção, rendeu-se ao papagaio e prestou seu tributo (ainda que ignorando a "cronologia" brasileira e seguindo o molde do Zé americano dos primórdios). Zé Carioca mostrou-se um brasileiro dos mais universais! Para quem quiser conferir a seleção de histórias, prévias e comentários dos leitores, basta conferir no fórum Calisota os tópicos do primeiro e do segundo volumes.

Como já dito, após uma década obscura, Zé Carioca aos poucos tem reaparecido sob holofotes: os dois especiais estão sendo bem acolhidos na rede e nas bancas; de Ruy Castro a comentadores anônimos, muitos deram os parabéns por seu jubileu de vinho; e, mais importante que tudo, no segundo volume do especial já temos um aperitivo do renascimento de Zé nos quadrinhos brasileiros, com duas histórias completamente inéditas — a produção retoma em poucos meses, segundo anunciado. Eu e o colega Thiago Machuca, do Portallos, aproveitamos a ocasião para uma rápida entrevista (ou antes um bate-papo) com Fernando Ventura, um dos principais responsáveis pela nova sobrevida do personagem e grande pesquisador de artes Disney (colaborando ele mesmo com a colorização, desenho e roteiro de muitas histórias). Fernando sintetizou e atualizou a conversa e mandou-me ainda uma exclusiva página de um roteiro seu para uma história ainda inédita. Esperamos com isso prestar nossas homenagens a esse grande personagem Disney que é Zé Carioca, e também incentivar um pouco o necessário reconhecimento da importância desses incríveis 70 anos — além de torcer para que a nova produção brasileira chegue com força e nunca mais seja interrompida!

ENTREVISTA COM FERNANDO VENTURA

SOBRE O RETORNO DA PRODUÇÃO

Filipe: A retomada da produção brasileira de Zé Carioca coincidiu com os 70 anos do papagaio. A Abril apressou ou atrasou essa produção para lançá-la na data comemorativa? Os artistas envolvidos receberam algum comando específico ou a volta do Zé já estava sendo planejada independentemente de qualquer aniversário?

Fernando: Desde o fim da produção (de quadrinhos Disney no Brasil), em 2000, eu escrevi e/ou desenhei, por iniciativa própria, HQs Disney inéditas, no intervalo de outros trabalhos (foram 10 histórias, ou 98 páginas)! A intenção era, claro, tentar convencer os editores a retomar a produção local e criar histórias com personagens que eu ainda não tinha tido oportunidade de desenhar. Não é fácil produzir uma HQ sem perspectiva de publicação, mas sempre tive esperança que um dia o contexto editorial permitiria o retorno da produção. Este cenário começou a se esboçar favorável novamente a pouco mais de um ano. Surgiu então o projeto de homenagear os 70 anos do Zé Carioca e, ao mesmo tempo, retomar a produção nacional com duas HQs inéditas. Os editores me pediram uma história e indiquei, para a outra HQ, o Arthur Faria Jr. e o Luiz Podavin, excelentes autores também saudosos da produção Disney nacional.

SOBRE AS TIRAS AMERICANAS DA DÉCADA DE 1940

Fernando: Paulo Maffia [o editor dos quadrinhos Disney no Brasil] me ligou e disse "veja se você consegue algum material raro para publicar no especial"! O que poderia ser mais raro do que as páginas dominicais do Zé Carioca? Foi preciso três coleções, localizadas em três países diferentes, para que todas as 104 páginas pudessem ser republicadas. Foram 6 meses de produção, desde a escolha das melhores matrizes até o letreiramento e revisão. Meu papel foi traduzir, colorir e supervisionar a restauração ou arte-final das tiras que não existiam em matrizes preto & branco. Essa etapa foi feita pelo David Gerstein, Shelley Plegger e José Wilson Magalhães. Quanto às cores, fiéis ao original, essa era uma linha que eu já vinha desenvolvendo desde a publicação de "As Obras Completas de Carl Barks". Foi somente durante a tradução que percebi que não apenas as últimas 5 gags eram inéditas nas publicações da Abril, mas que várias outras páginas haviam sido puladas, editadas, ou mesmo censuradas, nas publicações anteriores.

SOBRE HISTÓRIAS NOVAS E EXPORTAÇÃO

Filipe: O "esforço de exportação" comporta fazer histórias menos 'regionais' ou seria tornar a brasilidade do Zé tão divertida e especial que não se veria problemas em mandá-la para outros países assim como a fazemos aqui, sem alternar nada substancialmente?

Thiago: Por que a obsessão por bonés? Nota-se um uso perturbador deles nos anos 90, mas isso não se reflete tanto assim nos dias de hoje. E tanto na HQ da torneira quanto na das plantas [as duas inéditas do segundo volume do especial], ali estão os personagens com bonés. Fala-se em variedade, mas é fogo ver um personagem como o Pedrão de boné em sua nova HQ, e ainda um boné cor de rosa! Deveriam ter um cuidado maior a esses detalhes, até mesmo nas cores. Sacanagem colocar um boné cor de rosa no Pedrão... Existem outros tipos de chapéus, sabe? O chapéu Panamá ficaria perfeito no Zé e é algo tanto nostálgico como moderno nesta geração.

 Fernando: Enquanto eu trabalhava nas tiras, lembrei aos editores sobre as minhas HQs engavetadas. Por que não aproveitá-las? Deste modo pude me concentrar em terminar, com o cuidado necessário, a tradução e colorização dos tablóides. Foram tomados vários cuidados, como  a produção de uma guia nova de roteiros (feita a meu pedido pela Cecília Magalhães, que trabalhou comigo em Gemini 8), novas técnicas de escaneamento e colorização em formato americano. Deste modo as HQs podem ser republicadas em formato maior e exportadas. Quanto ao "boné cor-de-rosa" do Pedrão, na HQ das "plantas", era pra fazer contraste com as outras cores! E não é rosa, é magenta! Ah, ah, ah!
[Nota: Confira a cor do boné aqui.]

SOBRE O VISUAL DA TURMA

Filipe: Esta semana [esta entrevista tem alguns meses] terminei a leitura dos dois romances que inspiraram o filme "O caldeirão mágico", escritos por Lloyd Alexander, e assisti ao longa novamente, só o havia visto na infância. Esse filme teve um problema incrível desde a concepção até o lançamento, que foi basicamente o seguinte: o material foi considerado muito "dark" (impróprio para crianças) e o Katzenberger, então chefe da Disney, mandou cortar muitos minutos dele após reações negativas de uma plateia teste... A mutilação resultou num filme esquisito, incoerente e problemático, que deu um enorme prejuízo ao estúdio. O que eu queria com todo esse rodeio é perguntar algo simples: isso pode acontecer com os quadrinhos? De repente algum personagem, estilo, autor ou tendência é testado e violentamente rejeitado, a Abril ou mesmo a Disney pode interferir no aspecto artístico, de criação dessas obras? Nós lembramos do que houve com o Canini [artista brasileiro demitido pela Disney americana ao fazer um Zé Carioca "favelado" e com um traço diferente e autoral], mas e como funciona hoje? A Disney parece totalmente desinteressada pelos quadrinhos, ainda mais brasileiros; essa impressão é falsa ou aqui se tem liberdade de ação com os personagens disneyanos? Vocês devem seguir alguma "cartilha" vinda da matriz americana, com características imutáveis das condições físicas, psicológicas etc. das personagens?

Thiago: A cartilha da Disney diz quantos anos o Zé, Nestor, Pedrão e companhia devem ter? Personagens como o Donald ou Mickey passam a ideia de que já são adultos, mas às vezes, com esse Zé Carioca molecão, de boné e tênis, a impressão que tenho é a de que o personagem seria bem mais jovem. Esse visual dos anos 90, chamado de "Sérgio Malandro" por alguns, é um dos que mais se torcia para não retornarem, e foi ele que voltou. E agora? Vai ficar assim mesmo ou o Zé vai mudar para algo novo após as primeiras historias inéditas?

Fernando: Como já foi divulgado, foi dado aos artistas a liberdade para trabalhar com o visual dos personagens que preferir e que for melhor conveniente ao roteiro. Eu considero essa decisão muito acertada, pois permite aos roteiristas e desenhistas lidar com a questão de forma criativa. Em tempo, é preciso desmistificar a impressão de alguns leitores de que o Zé de boné e tênis "não deu certo". Como diria o Hércules, "tinha até bonequinho!"!. A iniciativa da Redibra, então representante Disney no Brasil, não foi imposta para a editora. Pelo contrário: foi aceita de bom grado pelos editores da época porque eles sabiam que isso renovaria o personagem, tanto que a presença do Zé Carioca, em licenciamento, exportação e mídias diversas, foi muito mais significativa nesse período do que na década passada. Outro ponto confuso é que as histórias do ano 2000 representam "o fim do estúdio nacional". Na realidade o estúdio já havia sido desmantelado em 1997. Foi justamente o lançamento dos gibis de R$ 1,00, em 1999, que permitiram à Abril voltar a produzir, ainda que por pouco tempo, novas HQs do Zé, Patos e Mickey, agora com artistas freelancers e estúdios terceirizados.

SOBRE O FUTURO

Thiago: A produção do Zé vai voltar apenas com HQs curtas? Alguma chance de vermos histórias maiores com o personagem? Especiais e paródias como era tão comum nos anos 90 (o gibi dos Trapalhões era craque nisso)?

Filipe: Só o Zé dará as caras na retomada da produção nacional? Como se darão as etapas desse ressurgimento? Como ficará a mensal do Zé e haverá a entrada de novos artistas nesta fase eufórica de renascimento?

Fernando: Eu acredito que com o aumento de vendas tudo pode acontecer, como mais histórias inéditas brasileiras de outros personagens e mini-séries. Eu adoraria bolar novas HQs da Turma da Pata Lee, por exemplo. Com continuidade tudo pode acontecer!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Sandrine Bonnaire

Durante aproximadamente cinco anos (2007-12), escrevi na Revista Zingu!, um espaço aberto à discussão de temas cinematográficos marginalizados e majoritariamente dedicado ao cinema brasileiro popular, à Boca do Lixo e aos autores e técnicos obscuros de uma porção expressiva da nossa identidade em celulóide. Durante mais de 130 (!) textos para a revista, discuti temas tão díspares como o único e incrível filme protagonizado pelo Fofão, animações da turma da Mônica e até mesmo filmes de sexo explícito! Da edição 4 até seu derradeiro número 54 participei com críticas, colunas e textos de todo tipo, desde uma análise sobre certos aspectos do clássico "O bandido da luz vermelha" até odes a musas da telona — cuja última participação minha se deu, com uma publicação conturbada por problemas de delay, em louvor à maravilhosa Natalie Wood.

Em março de 2010, fiz um extenso texto sobre um dos meus grandes amores em cinema: Sandrine Bonnaire. Eu a conheci pessoalmente em 2011, e ensaiei entregar o texto a ela. Não gosto de tudo que nele há, mas, como essa é uma das "edições perdidas" da Zingu!, que sabe-se lá se poderão voltar ao ar algum dia, colo aqui todo esse panegírico a uma das grandes figuras femininas do cinema das últimas três décadas (desatualizado, pois ela fez mais alguns trabalhos depois — inclusive dirigiu mais um longa):

Um dos sorrisos mais bonitos do mundo pertence a Sandrine Bonnaire, atriz francesa por vocação e destino, uma das presenças mais fascinantes do cinema nos últimos anos. Sandrine nasceu em fins de maio de 1967 e desde sua primeira aparição no cinema, como protagonista já em 1983, abraçou cada filme como uma mãe abraça seu filho pequeno. Este texto é uma pequena carta de admiração a uma atriz admirável, traçando breves considerações sobre seus trabalhos mais importantes, década a década.

Anos 80

Sandrine iniciou sua carreira de atriz sob um auspício favorabilíssimo: a obra-prima Aos nossos amores, de Maurice Pialat. Pialat não apenas foi o introdutor de Sandrine Bonnaire no cinema — antes ela havia feito quando muito pontas (não creditadas e nem confirmadas) em poucos filmes — mas a ajudou a se firmar como intérprete protegendo-a não só por trás como na frente das câmeras: ele fazia no filme o papel de seu pai. Sandrine saiu-se admiravelmente bem como Suzanne, jovem mulher que entra com dificuldade na vida adulta, hesitando entre o amor e o sexo, transitando entre dúvidas naturais para a idade e sua conturbada relação com a instável e agressiva família. Uma personagem difícil, que Sandrine desenvolve com espontaneidade ímpar, criando uma das maiores representações da adolescência no cinema. O magnífico desempenho da jovem francesa a coloca em evidência em revistas, jornais, críticas, projetos de novos filmes.

Ocorre que o cinema não costuma entender ou aceitar atores jovens, portanto Sandrine acaba fazendo alguns filmes que não a valorizam: Tir à vue e Le meilleur de la vie são exemplos de produções que apostam apenas no superficial — a nudez do belo corpo juvenil de Sandrine Bonnaire —, o que talvez explique o pudor de Sandrine nos anos seguintes, onde quase não se expõe fisicamente em filme algum, sob nenhum pretexto. A menina — ela tem por volta de dezesseis anos nessa época — parece então despontar de vez e recebe convites irrecusáveis, de grandes diretores: assim, em poucos anos trabalha com Agnès Varda — para quem faz a inesquecível composição da protagonista de Os renegados, moça pária em uma descompassada sociedade contemporânea —, com Jacques Doillon (em A puritana, ao lado de Sabine Azéma e Michel Piccoli), com André Téchiné (em Os inocentes, junto a Jean-Claude Brialy, figura tarimbada nos filmes nouvellevaguistas), com Claude Sautet (em Quelques jours avec moi, formando um charmoso casal com Daniel Auteuil e dividindo a cena também com Danielle Darrieux e Jean-Pierre Marielle), e novamente com seu padrinho Maurice Pialat, em dois filmes junto a Gérard Depardieu; em Polícia ela tem presença curta e marcante, mas em Sob o sol de Satã o espetáculo é quase todo dela: sua Mouchette é um grande momento dramático e certamente sua desenvoltura segura e honesta foi um dos trunfos que fez esse polêmico filme questionador da fé realizado por Pialat sagrar-se vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Em 1989 ela faz dois filmes: o pouco comentado Peaux de vaches, no qual se relaciona, com certa desconfiança inicial, com Jean-François Stévenin — ator e ajudante de François Truffaut —, um filme cheio de barulhos de máquinas e pequenos sentimentos acobertados por uma espécie de desconforto social; e Monsieur Hire, uma obra-prima de Patrice Leconte baseada em um romance do brilhante Georges Simenon. Em Monsieur Hire, Sandrine co-protagoniza, ao lado de Michel Blanc (excelente no papel-título), uma trama mais sentimental que policial, onde o maior crime (e perigo) é se apaixonar. Sua Alice é tão erótica e dúbia quanto a da obra literária, mas a doçura de Sandrine é tanta que faz o espectador sempre ficar de seu lado e perdoar seus erros, aceitar suas mentiras. É o filme em que Sandrine está mais linda em toda a sua filmografia; além de a fotografia destacar cada um de seus trajes, femininos e sugestivos, Sandrine está com os cabelos louros (a personagem literária é ruiva), a aparência jovem, alegre e entusiasmada, o corpo esculpido de maneira sublime. A cena em que aparece apenas de calcinha e sutiã se trocando defronte à janela onde Michel Blanc a espia e escuta Bhrams é a mais perfeita do filme e provavelmente a melhor já filmada por Leconte em sua carreira. O filme acabou servindo como um tributo tardio a Simenon, morto naquele mesmo ano.

Anos 90
 
Década prolífica para Sandrine Bonnaire, iniciada com La captive du désert. Trata-se da história (real) de uma francesa que ficou refém de uma tribo africana por meses e meses. O filme não introduz nada, não há diálogos muito aprofundados, os silêncios, olhares e as extensas repetições dão conta do marasmo a ser retratado e alcançado. Dirigido pelo famoso fotógrafo Raymond Depardon, se assemelha a um documentário da National Geographic, filmado à distância com uma câmera de longo alcance. A sensação de "verdade" da obra é enorme, inacreditável; se o espectador não conhecer Sandrine Bonnaire, se for o primeiro filme que vir com ela, provavelmente terá plena certeza que vê um documentário. Mesmo porque o restante de elenco é tribal de fato, e o filme é consideravelmente voyeurístico, bem pouco aproximado, iniciando-se já com a situação montada — sem sequer mostrar o que houve para a mulher ser capturada.

Em seguida, Sandrine tem encontros muito importantes: o primeiro é com Marcello Mastroianni, em Verso sera, produção italiana de sentimentalismo aflorado pela presença do inesperado casal formado pelo velho Marcello e pela jovem e bela Sandrine. O segundo é com William Hurt, com quem viria inclusive a ter uma filha, de nome Jeanne; o casal esteve junto em A peste, adaptação do célebre romance de Albert Camus, espécie de fábula apocalíptica voltada na verdade para desencontros afetivos, e em Confidências a um estranho, drama de época em que o fantasma incômodo da aristocracia reina sobre personagens embrutecidos pelas circunstâncias. O terceiro encontro é com Jacques Rivette, com quem faz três belíssimos filmes: Jeanne la Pucelle é uma obra bipartida sobre a santa heroína Joana d’Arc, sendo a primeira parte sobre as batalhas que liderou (Les batailles) e a segunda, sobre sua prisão como herética (Les prisons) — a expressão de Sandrine é mesmo a de uma figura etérea, imaterial, que tem uma missão a cumprir, e é indizível o grau de perfeição de sua representação na cena da condenação, com a luz mudando, o olhar de hesitação, o texto agressivo, a abjuração, o sorriso quando ri das acusações... —; Defesa secreta é um filme de encenação majestosa e atuações sutis, dramas íntimos e poderosos, num trabalho meticuloso mas apaixonado, como de costume nas fitas do diretor; e Sandrine mais uma vez tem um desempenho ímpar, numa personagem que vai praticamente se metamorfoseando moralmente ao longo da obra. O quarto encontro importante é com Claude Chabrol, que dirige Sandrine em dois momentos muito especiais: Mulheres diabólicas é a celebração das “mulheres perversas” chabrolianas, onde Sandrine e Isabelle Huppert dividem a cena e as maldades, arrepiando o espectador com sua frieza e psicopatia; A cor da mentira é um belo estudo à Fritz Lang sobre o que um boato, verdadeiro ou não — o marido de Sandrine é acusado de ter assassinado uma garotinha —, faz à vida e à reputação de uma pessoa fraca, que tem de encontrar forças para conviver com a culpa e o remorso de uma atrocidade cometida sabe-se lá por quem.

A década ainda traz a Sandrine um reencontro, com uma de suas figuras “descobridoras”, Agnès Varda: Sandrine faz uma participação afetiva em As cento e uma noites, relembrando personagens anteriores, principalmente a moça desajustada de Os renegados — o filme que rendeu o Leão de Ouro a Varda dez anos antes, criação emblemática para Sandrine e uma de suas principais marcas de maturidade como atriz. Esse reencontro tem lugar portanto em 1995, e nele também Sandrine contracena novamente com Michel Piccoli (com quem trabalhara na década anterior em La puritaine), o que aumenta o ar familiar da carinhosa homenagem prestada por Varda a essa cada vez mais completa jovem atriz francesa.

Entre as outras obras que contaram com a participação de Sandrine nessa década o destaque vai para Leste-Oeste – O amor no exílio, mais uma produção elogiada do irregular Régis Wargnier (o diretor de Indochina). Não chega a ser um trabalho excepcional, pois esbarra na preguiça acadêmica costumeira do cineasta, mas é com esse filme que Sandrine encerra a década de 1990, sua década mais produtiva, na qual se permitiu experimentalismos em outros países e gêneros cinematográficos.

Anos 2000
 
 Mais um período de intenso trabalho para Sandrine Bonnaire — interrompido em 2004 quando teve sua segunda filha, Adèle, com o roteirista Guillaume Laurant (seu marido desde 2003). Os filmes em que atua nesta fase são caracterizados por produções modestas, muitas vezes de cineastas neófitos e com elenco desconhecido. O primeiro deles é Mademoiselle (não confundir com o filme de mesmo nome dirigido em 1966 por Tony Richardson, com Jeanne Moreau), história leve de um romance fugaz. Sandrine não fazia muitas comédias no início de sua carreira, o que vem paulatinamente mudando. Mademoiselle não é um filme de humor, mas um filme de amor, portanto tem uma doçura que escapa a quem não entende esse sentimento. O filme seguinte, C’est la vie, tem um tom mais sombrio, ainda que o filme seja bastante claro e alegre na superfície; trata-se de uma esforçada Sandrine Bonnaire, desapegada e alegre, convivendo com a morte dos outros, numa narrativa delicada e que ainda tem o grande ator e cantor Jacques Dutronc co-protagonizando o filme com a francesa (e cantando com ela!).

 Após uma participação no Femme fatale de Brian de Palma, Sandrine volta a trabalhar com outro “descobridor” seu: Patrice Leconte. Em mais um belo trabalho autoral, Confidências muito íntimas, considerável sucesso de público e crítica. No filme de Leconte, os personagens se cruzam por acaso, e, dependentes emocionais, se relacionam à distância, mesmo em pensamentos. Confidências tornou-se um dos mais celebrados (e conhecidos) filmes com Sandrine Bonnaire fora da França, e é co-estrelado pelo ator rohmeriano Fabrice Luchini.

Os filmes seguintes não provocam muita repercussão e nem sequer foram lançados no Brasil: Le cou de la girafe é uma parceria interessante entre Sandrine e Claude Rich, personagens estremecidos por desencontros provocados pela inocência infantil de uma pequena menina, filha de Sandrine; L’équipier traz um amor conturbado entre uma mulher casada e um homem misterioso numa comunidade campesina situada numa região afastada e cujo único diferencial é um obscuro farol; Je crois que je l’aime é outra comédia romântica, açucarada na medida adequada para permitir a Sandrine interpretar sua personagem com desenvoltura e segurança; em Demandez la permission aux enfants as crianças é que tomam o controle de tudo, criando situações embaraçosas e forçando seus pais a intervirem de maneira curiosa e engraçada; Un coeur simple é uma adaptação do conto homônimo de Gustave Flaubert, com Sandrine fazendo o papel da servil Félicité, tão embrutecida quanto na história original e com uma nobreza tão pouco compreendida quanto; L’empreinte de l’ange mostra a agonia de uma mãe com uma estranha se aproximando da filha (mas talvez os papéis não sejam exatamente esses); Joueuse traz Kevin Kline em seu primeiro papel francófono e contracenando com Sandrine Bonnaire em seu último filme até a data, neste trabalho em que os protagonistas fazem do xadrez e da cultura uma maneira de se conhecerem e respeitarem.

Curiosamente, o trabalho mais importante da década para Sandrine, por razões profissionais e pessoais, não foi um filme em que atuou como atriz, mas um documentário dirigido por ela mesma: Ela se chama Sabine é um delicado retrato de sua irmã (a moça do título), jovem autista que teve sua situação física e mental agravada pela ignorância, negligência e imperícia do atendimento médico a que foi submetida. Por um lado é uma história alegre, porque mostra o amor de Sandrine por sua irmã, cenas da família reunida e feliz, décadas atrás; mas também é triste, quando mostra a degradação acentuada de Sabine e seu estado beirando a total inconsciência mental em certos momentos. Aos interessados em ver este doloroso filme-tributo, existe na rede virtual, em programas de compartilhamento, uma versão que traz de bônus um programa de televisão em que Sandrine foi convidada a comentar o filme e debater o assunto do autismo com especialistas da área médica, o que faz com veemência e sinceridade. Sandrine, por sinal, tem respeitável histórico ativista no assunto do autismo, chegando inclusive a se reunir oficialmente com Nicolas Sarkozy para discutir o tema.

Sandrine ganhou vários prêmios em sua carreira, sendo os mais importantes o César (duas vezes: como revelação por Aos nossos amores e como atriz por Os renegados) e o troféu de melhor atriz em Veneza (por Mulheres diabólicas, honraria dividida com Isabelle Huppert pelo mesmo filme). Também foi indicada e premiada outras inúmeras vezes. Porém o mais importante para ela não é colecionar estátuas ou placas, mas alcançar com suas atuações diferentes níveis de expressividade, de sensibilidade, de comunicação. Sandrine Bonnaire é uma atriz apaixonante porque é uma mulher apaixonante.

Bônus: alguns vídeos com momentos marcantes de Sandrine Bonnaire.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Grandes animadores: Frank Tashlin

Nos anos 30 e 40, a maior concorrente da Disney no campo da animação provavelmente era a Warner Bros. Com personagens extremamente carismáticos — e criados especialmente para os cartoons, ao contrário das adaptações de Popeye, Krazy Kat etc., que no mais das vezes eram pálidas "amenizações" da genialidade dos quadrinhos —, a Warner conseguiu se impor não apenas pela força de sua produção mas também por estratégias comerciais bem sucedidas: como passavam curtas antes dos longas no cinema, não era difícil encher de coelhos, patos e porcos a cabeça de quem foi atrás dos filmes com James Cagney, Errol Flynn, Bette Davis; além disso, os desenhos muitas vezes satirizavam/homenageavam as produções dos estúdios, havendo por exemplo grande material paródico sobre Casablanca e os famosos gângsteres da Warner, como Humphrey Bogart, George Raft, Edward G. Robinson.

Diferentemente da busca de aperfeiçoamento naturalístico disneyano, tentando observar a natureza e extrair dela a matéria-prima de suas obras, a ordem na Warner era a anarquia: personagens se esticando, amassando, se machucando cruelmente e logo em seguida de pé e prontos para azucrinar seus rivais e oponentes, movimentos que desafiavam qualquer lei da física. Era uma saudável complementação: à gentileza de Mickey Mouse se contrapunha o cinismo "grouchiano" de Bugs Bunny (Pernalonga), aos surtos de humor de Donald Duck juntava-se a bizarra amoralidade de Daffy Duck (Patolino), face à ingenuidade de Pateta seu colega suíno Porky Pig (Gaguinho) demonstrava por vezes um gênio igualmente bondoso.

Por essa época, verdadeiras pedras basilares da animação estavam dirigindo e criando desenhos animados para a Warner: Chuck Jones, Friz Freleng, Tex Avery. Menos conhecido nesse campo, Frank Tashlin animou alguns curtas e dirigiu muitos outros, que estão ainda hoje entre as maiores pérolas do estúdio. Revê-los é um prazer e simultâneo aprendizado. Continuam engraçadíssimos e fascinantes.

A razão para Tashlin ser pouco lembrado nessa área nada tem a ver com sua competência. Ou melhor, tem: Tashlin acabou se tornando uma lenda em outro campo da arte cinematográfica: a comédia, pura e simplesmente. São dele os mais geniais filmes com Jerry Lewis não dirigidos por Jerry Lewis. Ele que deu a Jayne Mansfield seus grandes momentos, em The girl can't help it e Will success spoil Rocky Hunter?. Ele que dirigiu Bob Hope em sua comédia mais reverenciada, Son of Paleface. Os franceses o adoravam, o público aprovava seus filmes mesmo sem saber que era Frank Tashlin o maior responsável por tudo aquilo dar certo.


Mas poucos se lembram que Tashlin começou na animação. E foi ali que ele pegou o espírito que faria de suas obras mais famosas inquestionáveis "filmes de autor". Sua concepção visual veio dos desenhos animados, com a elasticidade de corpos, maior exploração do campo visual, perfeição na mise en scène (encenação), direção apurada com as possibilidades do enquadramento, da câmera, do corte. Um animador pensa em tudo isso, pois ele é quem constrói a imagem, frame a frame, vinte e quatro vezes por segundo.

É preciso redescobrir o Frank Tashlin animador, assim como a crítica francesa o descobriu verdadeiro cineasta nos anos 50. Como pequeno incentivo, alguns vídeos de seu trabalho para deixar perene a memória desse grande artista:



P.S.: Descobri há pouco tempo que Frank Tashlin possui outra faceta esquecida do grande público: escritor. É dele este livro, que parece ser relativamente conhecido em alguns círculos, e que dificilmente não deve ser muito bom. A procurar.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Grandes ilustradores: W. W. Denslow

É difícil conceber a ideia de literatura infantil sem considerar um aspecto geralmente indissociável desse nicho: as ilustrações. De John Tenniel — o brilhante ilustrador dos mundos percorridos pela irrequieta Alice de Lewis Carroll — aos ilustradores de Lobato, cada época viu seus artistas e autores empenhados em um tipo de expressão específica para agradar às crianças, sugestioná-las ou simplesmente entretê-las. Um dos principais nomes do desenho literário infantil do século XX foi W. W. Denslow, ou, como foi batizado, William Wallace Denslow.

A bem dizer, ao contrário de ilustradores como Garth Williams e Gustave Doré, Denslow perenizou sua celebridade ao ser relacionado apenas a um trabalho; ele tem uma produção de extensão considerável (chegou mesmo a fazer uma compilação de suas obras em dezoito volumes!), mas não se pode fugir à beleza desse seu maior momento de glória, que neste ponto muitos já saberão se tratar das ilustrações do excepcional The wonderful wizard of Oz, de L. Frank Baum.

Denslow já havia feito alguns livros em parceria com Baum, e entraram de cabeça nesse projeto bastante ousado — que, por feliz conjuntura providencial, alcançou um estrondoso sucesso —: narrar as estranhas aventuras de uma menininha (Dorothy) numa terra fantástica e repleta de seres mágicos, desde bruxas a animais falantes. Baum, o escritor, inclusive dividia os direitos da obra com Denslow. E evidentemente ambos pensavam em Tenniel e Carroll, tendo Dorothy sido criada, então, um pouco como uma "irmã" de Alice. Decisão mais do que acertada, afinal Alice é talvez a primeira e mais importante representação infantil literária moderna.


A aposta não foi em vão. Os desenhos de Denslow ficaram logo entre as razões da grande popularidade do livro. Por questões comerciais, a parceria entre os dois encerrou-se pouco depois e Denslow não ilustrou nenhuma outra das inúmeras aventuras passadas em Oz, sendo substituído pelo prolífico John R. Neill. Aliás, Deslow morreu em 1915, antes até dos sessenta anos, bem em meio ao furor febril que fez Baum legar mais de uma dúzia de romances e contos sobre Oz. Mas sua influência ainda era perceptível, seus modelos eram fortes demais para serem ignorados. Até quando Baum se arriscou a fazer cinema, roteirizando ou dirigindo pequenos filmes sobre suas personagens, era nítido o (involuntário?) espírito de Deslow na Dorothy gorduchinha com um vestido afunilado, o leão de enorme cabeça e ar de velho cansado etc.

Para quem quiser comprovar e relembrar tais incríveis criaturas, eis His majesty, the scarecrow of Oz, de 1914:

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Mad about you

Mad about you foi um dos seriados que eu via na adolescência, época em que, apenas com obrigações escolares e bem mais livre na cabeça e no tempo, tive tempo para perder muito tempo com mil coisas que hoje sacrificaria sem nenhum sacrifício.

Uma delas eram os seriados que eu via aos montes, nos canais pagos da Warner e da Sony. Vi várias temporadas de Friends, Just shoot me!, Frasier, Becker, Everybody loves Raymond, Married... with children, Spin city etc. Como deu para perceber, adorava sitcoms, pouco ligava para os dramas ou esse tipo de série mais "interligada" que hoje abunda, com arcos narrativos que tomam muitos episódios e às vezes a série toda — não, o que eu queria era dessas séries "imediatas", que tanto faz como tanto fazia ver episódios pulados, soltos, fora da sequência e o que mais fosse. Mas claro que havia aí um paradoxo involuntário: para que procurar tanta liberdade, se eu religiosamente não perdia um momento dessas séries? Além de tudo elas eram reprisadas à exaustão...

Mas a minha favorita sempre foi Mad about you. Enquanto a maior parte dos seriados eu via como quem assiste a algo dispensável, que pode ser descartado, Mad about you era outra coisa: era importante, necessário, era algo que me dizia respeito, eu me importava com aquilo e com aquelas pessoas.

A razão mais forte para eu gostar tanto dessa sitcom era a mesma que faz com que ainda hoje eu continue apaixonado por ela: Helen Hunt. Ou melhor, Jamie Buchman. O feliz encontro que juntou uma atriz magnífica com sua expressão mais perfeita. Costumo dizer que as melhores atuações que já vi em seriados televisivos são as de Helen Hunt neste Mad about you e a do colossal Peter Falk em Columbo. Jamie Buchman, que já descrevi como "a mulher da minha vida", me atrai por sua incrível sinceridade/naturalidade, uma voz de intensidade e força que faz com que ela pareça sempre possível e encantadora, companheira e cúmplice inteligente, real.

Mad about you centra-se em Jamie e seu marido, Paul, feito por um dos criadores da série, Paul Reiser (o outro criador é Danny Jacobson). Se é verdade que por vezes o texto de Paul parece muito "engraçadinho", quase um deslocado 'stand up', seu jeito descontraído e seu bom timing cômico relevam qualquer problema desse tipo. E não se pode falar mal de quem criou essa série, fez sua música-tema e compôs junto a Helen Hunt o casal mais simpático da televisão.

Paul e Jamie são os únicos personagens que seguem do começo ao fim da sitcom. A melhor amiga de Jamie (Fran), sua irmã (Lisa), os pais de Paul (Sylvia e Burt), seu primo (Ira) e muitos outros dão as caras com maior ou menor frequência, sumindo por uns tempos e reaparecendo em outros. Alguns personagens, como o "andador" de cachorros, a terapeuta do casal, o tio esquisito de Paul (feito por Mel Brooks) ou os pais de Jamie (interpretados por vários atores, com destaque para os míticos Carol Burnett, admirada por Chespirito, e Carroll O'Connor) também aparecem com certa regularidade, apesar de nunca serem exatamente fixos.

Fixos mesmo apenas Paul e Jamie Buchman. E isso é ótimo e muito adequado. Aliás, sinto uma queda na qualidade do seriado quando as histórias "de marido e mulher" se transformam em histórias "de família". Quando resolvem ter um filho, quando de fato nasce uma menina (Mabel, única herdeira dos Buchmans) e a série perde essa gigantesca qualidade da crônica de um jovem casal, ficando um pouco mais convencional, apesar de ainda admirar pela vitalidade dos atores, a direção afinada, o texto com sua graça peculiar e sobretudo ainda por Helen Hunt, que nunca está menos que fascinante em cada um dos 164 episódios.

A série fez sucesso por aqui, era constantemente reprisada e creio que chegou a passar na televisão aberta, evidentemente dublada (o que é um crime). Mas há anos é pouco referenciada, sempre perdendo pela superexposição da muito inferior Friends, que foi inteiramente lançada em DVD e agora sai em blu ray; Mad about you só saiu aqui numa edição especial comentada, com apenas quinze episódios selecionados. E nem nos EUA a série saiu de modo integral, o que é um grande absurdo e menosprezo.

[Falando em Friends, pode-se dizer que Mad about you é um pouco sua sitcom-irmã. Lisa Kudrow tem um papel em ambas; na primeira, é uma das protagonistas; na segunda, que iniciou antes e em que faz apenas participações especiais, é... a irmã gêmea da personagem que faz na primeira! Um detalhe curioso, sendo que há um episódio de Friends em que Jamie e Fran aparecem no café dos amigos e confundem sua conhecida com a irmã dela. Esse tipo de conexão, é verdade, me divertia mais quando eu era mais novo; mas é bacana também para vermos como Mad about you estava no centro do que se fazia de popular nas sitcons da época, tendo também um episódio com a presença de Kramer, o célebre amigo de Jerry Seinfeld em sua autointitulada série.]

Alguns grandes momentos nunca sairão da minha cabeça, como o episódio em tempo real e só um take, em que Paul e Jamie sentam do lado de fora do quarto de sua filha, esperando a bebê pegar no sono; uma festa em que eles se dividem e cada um vive suas cenas independentemente do outro mas com ação simultânea e uma bela distorção do tempo e espaço; as participações de gente como Jerry Lewis, Nathan Lane, John Astin e Steve Buscemi; e, claro, o casal se conhecendo, Paul tomando a iniciativa, Jamie o levando para a festa da empresa. Coloco aí embaixo esse belíssimo encontro, de uma honestidade sentimental fabulosa, junto a uma das aberturas (algumas fotos e nomes de elenco iam sendo substituídos) e a cena final exibida em 1999. Após sete anos e um merecidíssimo Oscar no meio do caminho para Helen Hunt, a série se encerrava da maneira mais tocante possível, num episódio duplo dirigido pela própria intérprete de Jamie. Fechando assim uma pequena joia romântica que envelhece muito bem e continua sendo uma grande inspiração para mim.

domingo, 28 de outubro de 2012

Grandes animadores: Winsor McCay

 A "paternidade" da animação cinematográfica é normalmente creditada ao mítico Émile Cohl. Mas foi talvez Winsor McCay que, nos primórdios dessa arte, conseguiu desenvolvê-la ao ponto de criar inconsciente e involuntariamente inúmeras escolas que o seguiram e o seguem ainda hoje. Um dos prêmios mais famosos dados aos animadores (inclusive a Andreas Deja), o Winsor McCay award é um justo reconhecimento a um brilhante artista que não só foi um desbravador de caminhos, um pioneiro, mas um entusiasta inigualável, um daqueles visionários que tanto labutam em sua área de atuação que criam um padrão de excelência.

Winsor McCay é também célebre por ser o autor do seminal quadrinho Little Nemo in Slumberland. Um dos personagens mais influentes da arte sequencial, o menininho que ao adormecer adentra terras mágicas e surreais continua sendo uma quintessência da beleza gráfica narrativa, influência e inspiração de autores tão diferentes e tão geniais como Robert Crumb e Moebius. Na Itália há um selo editorial chamado Little Nemo, dedicado a obras sobre quadrinhos. No dia 15 deste outubro todo o mundo pôde ver a homenagem que o Google fez aos 107 anos desse espantoso ícone cultural. Até mesmo aqui no blog ele já havia sido citado!

No campo da animação, Winsor McCay não é menos influente, e seus curtos filmes impressionam pelo vigor do traço, a força do movimento definido, a beleza da composição. Dinossauros, aborígenes, até mesmo seu pequeno sonhador dão as caras no meio da fantasia de seu artista, que inclusive aparece em seu mais clássico momento apresentando a uma plateia de céticos seu maravilhoso engenho em fazer imagens se moverem!

O cinema de Winsor McCay é curto mas extremamente profundo. Mike Leigh colocou em seu top 10 filmes o curta How a mosquito operates, de apenas cinco minutos. A duração não importa muito: em minutos McCay podia criar mundos que cineastas e animadores menos capazes só conseguiam reproduzir, parcialmente, em épicos de muitas e aborrecidíssimas horas. Como se pode observar na pequena amostra de sua magnífica imaginação, a seguir:

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Os quatro romances de Lygia Fagundes Telles

Em 2008 li Ciranda de pedra e fiquei muito impressionado. Aos poucos fui lendo outros livros de Lygia Fagundes Telles, e verdade que se poucos me impressionaram tanto quanto o primeiro (meu outro favorito dela é um de contos, Seminário dos ratos), foi muito bom ir aos poucos lendo o resto de sua obra e acompanhar paulatinamente sua evolução de temas, personagens e estilos. Terminei ontem seu último romance, As horas nuas, lendo cada um deles na ordem em que foram escritos/publicados. Eu vejo uma nítida gradação de alguns temas, e mesmo a meu ver suas personagens vão envelhecendo junto com ela. Comentando brevemente cada um dos livros:

Ciranda de pedra (a infância): concentra-se em Virgínia, jovem que se vê às voltas com as diferenças entre o que esperam/querem dela e as percepções que possui do mundo e da vida. Com uma narração extremamente delicada e sugestiva, acompanhamos o crescendo do inconformismo da moça e suas relações problemáticas com as irmãs (Bruna e Otávia), sua paixão (o indeciso Conrado) e os adultos que vagueiam ao redor dela um pouco como espectros, sem adentrar seu mundo e sem procurar compreendê-la. Aparecem na trama assuntos polêmicos como eutanásia, loucura, suicídio, lesbianismo, incompatibilidade familiar. O livro foi bem recebido e colocou a autora, que havia publicado livros de contos com relativa repercussão, em destaque na nova literatura contemporânea brasileira. Foi adaptado duas vezes para novelas televisivas, que, não sabendo lidar com o material "controverso" do romance, pasteurizaram o livro até as raias do inócuo e insosso. Virgínia é uma personagem solitária, que precisa encontrar em si mesma, sem qualquer ajuda exterior, a força para seguir adiante mesmo com suas dúvidas e temores, em meio a grotescos cotidianos. Considero um pouco um "romance casulo", e Virgínia passará de lagarta a borboleta até o final da narrativa. Publicado em 1954.

Verão no aquário (a adolescência): Raíza é a jovem da vez. Menos reprimida que Virgínia, a jovem desfila de calcinha pela casa e se interessa por um homem mais velho, entrando em uma disputa "fria" com a própria mãe, que evidentemente não a entende. O confronto entre a imaturidade da juventude e a experiência grave e culpada de uma figura mais velha autoritária (mesmo que involuntariamente) é um dos principais elos entre todos os quatro romances; mas aqui se começa a discutir problemas psicológicos mais graves, e também as drogas vão se insinuando, o sexo como forma de punição passa a co-existir com certo desprezo pelas pessoas (notadamente por Marfa, desagradável presença)  — uma vaga misantropia que passa a ser mais acentuada pela mudança estilística que faz Raíza, diferentemente de Virgínia, exprimir-se em primeira pessoa. A jovem parece serenar um pouco próximo ao fim do romance — um pouco o caminho contrário seguido pelo Eduardo Marciano de O encontro marcado, de Fernando Sabino, que possui muitas semelhanças com a moça —, quando ocorre um acontecimento que pode ser definido como o clímax do relato, divisor de águas na personalidade de Raíza. Publicado em 1963.

As meninas (a mocidade): talvez o romance mais ambicioso de Lygia Fagundes Telles, com uma profusão de temas e pontos de vista, pois desta feita temos três narradoras - Lia, a "guerrilheira", Ana Clara, a perdida nas drogas, e Lorena, a burguesa em crise. O livro é intercalado pelas diferentes vozes narrativas, com diversas pontuações, vocabulários e mentalidades. Possivelmente a narração mais bela seja a de Ana Clara, totalmente despida de vírgulas, num torpor visceral que é quase como uma confissão ao leitor. Mas a personagem mais "positiva" é Lorena, que talvez seja a única das três meninas que afinal pode se salvar ainda. Nesta história vemos relatos intensos sobre a ditadura militar brasileira e seus métodos de tortura, o reacionarismo social e a decadência de valores da classe média. É o livro mais famoso e aclamado da escritora, ganhador de vários prêmios e inclusive adaptado para o cinema. Escrito durante os anos mais repressores do regime militar, demonstrando uma inquietação algo corajosa e uma proposta política de conscientização até então sublimada em sua ficção, além de potencializar o drama e o contexto por que passam as personagens ao longo do livro. Publicado em 1973.

As horas nuas (a maturidade): o romance com mais perspectivas, e pela primeira vez algumas masculinas. Pode-se centrar o discurso em dois núcleos: Rosa Ambrósio, os três amores da atriz decadente e alcoólatra, e seu gato Rahul, visionário de vidas passadas e crítico da civilização; e Ananta, a introspectiva psicóloga/terapeuta de Rosa Ambrósio, e seu primo Renato. O discurso alterna-se entre direto e indireto livre, causando por vezes estranhamento pelo ritmo irregular. É o romance menos convencional da autora, e ao final praticamente nenhuma intriga ou conflito é resolvido, mesmo após uma guinada que praticamente muda o gênero de ação e propõe um novo problema (com uma substituição de personagens bastante curiosa); é como se a narrativa apenas se houvesse ocupado de breves instantes retirados de suas vidas, como fotografias retratando momentos aleatórios de existências que nunca chegamos a compreender realmente. Também é seu romance mais parecido com seus contos, adotando em certas passagens elementos do sobrenatural, do hermético emocional e de um jogo de espelhos intrincado e sem solução. Publicado em 1989.

Lygia, aos 89 anos, fica nos devendo um romance sobre a velhice (a velhice temida por Rosa Ambrósio e sequer cogitada por Virgínia). O principal problema que vejo em seus romances é o acúmulo de interjeições/imprecações que se repetem, como chavões ("compreende?", "pombas", "ô! meu pai"), e tornam de alguma maneira aquelas personagens mais estereotipadas e menos críveis. Ciranda de pedra não possui esse recurso, e também é o único de seus romances narrado exclusivamente em terceira pessoa (onisciente). Talvez por isso, ou por eu gostar muito de histórias sobre a juventude, seja meu favorito — mas também acho que por Virgínia me lembrar um pouco a Suzanne de À nos amours, um dos meus filmes favoritos e retrato perfeito das perturbações que separam a vida infantil da adulta.

O quinto romance de Lygia Fagundes Telles, sempre prometido e anunciado mas nunca parido, ainda está por nascer.