quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Lucky Luke

Lucky Luke é uma longeva série de faroeste cômico, criada em 1947 pelo desenhista Maurice de Bevère, ou Morris. Assim como com Tex, Ken Parker e outros gloriosos ícones do western, durar tantas décadas mesmo após a virtualmente inquestionável extinção de seu gênero-base significa que estamos diante de um quadrinho especial, de um personagem de grande força e apelo. Lucky Luke não sai de moda jamais, sendo sempre alvo de mais e mais lançamentos: seu último álbum até o momento, Cavalier seul, saiu ano passado e é o incrível 115º da série; há séries spin-off dedicadas a suas aventuras quando pequeno (Kid Lucky, onde ao invés do tradicional revólver nosso mocinho empunha um certeiro estilingue!) e ao cachorro bobo e adorável e burríssimo Rantanplan, clássico suporte das aventuras de Lucky Luke com seus arquirrivais, os irmãos Dalton; houve também filmes e o mais recente saiu em 2009, com Jean Dujardin no papel-título.

Eu sou bastante familiarizado com o faroeste, desde criança, e digo sem pestanejar: foi Lucky Luke quem me introduziu a esse mundo. Foi lendo essa coleção que eu fui apresentado aos terríveis outlaws Jesse James e Billy the Kid, que conheci/descobri as diligências, os telégrafos, os sinais de fumaça indígenas (e algumas palavras, como papoose, o equivalente ao nosso "curumim"), os elixires "milagrosos" que os charlatães vendiam às pencas, os repulsivos caçadores de recompensa, o tratamento dado aos imigrantes nas novas terras de fronteira, os saloons (com toda sua fauna de dançarinas, jogadores e embusteiros), o começo da imprensa (GO WEST, YOUNG MAN, GO WEST, Horace Greely!), as falsificações de cédulas, as amplidões das pradarias, os caça-níqueis, as forcas, as divisões e ranqueamentos do exército, as guerras de propriedade (com arame farpado e demarcações fraudulentas), entre inúmeras outras coisas. Cada volume de Lucky Luke é um pouco uma aula histórica, com sua sátira pontual não sendo assim tão irônica se percebermos que a epopeia do faroeste (e praticamente toda a civilização humana, pois o faroeste é um microcosmos de todo o proceder humano, talvez) foi calcada sempre em violência e em personagens estranhamente folclóricos, algo já dados à caricatura, a uma representação extremada e mítica.

Lucky Luke é também uma série de grande visão por perceber que ser uma paródia não necessariamente descredencia a pertinência incisiva de uma narrativa. Com suas brincadeiras e releituras, Lucky Luke acaba sendo por méritos próprios um dos melhores registros do que houve naquele período (final do século XIX) nos Estados Unidos e adjacências. Diria mesmo que é uma das poucas fontes que se tem disso no Brasil, junto a escasso material: de cabeça, lembro apenas do Enterrem meu coração na curva do rio (de Dee Brown), da questionabilíssima biografia de Billy the Kid alegadamente escrita por seu matador (Pat Garrett) e as incríveis Blizzard Gazettes escritas por Gianfranco Manfredi para Mágico Vento (série publicada na íntegra pela editora Mythos, ao longo de um período de cerca de dez anos). Há também que se procurar nas obras de autores como Mark Twain e Jack London a descrição do que era estar e viver naquele tempo e espaço.

Mas além de todo o (sim) preciosismo histórico — é preciso reforçar que boa parte dos álbuns possuem fotos, documentos e textos contextualizando as coisas reais encontradas na aventura lida —, Lucky Luke tem um grande pilar de sustentação: Lucky Luke! Esse caubói magrelo e beiçudo, de roupa simples (jeans, camiseta amarela, chapéu branco, jaqueta preta, lenço vermelho ao pescoço) e que sempre termina cada trama seguindo adiante, montado em seu cavalo branco (e louro) Jolly Jumper (o equino mais sarcástico de que se tem notícia nos quadrinhos), cantando sua sina: I'm a poor lonesome cowboy / And a long way from home...

Lucky Luke atira mais rápido que a própria sombra. Em anos recentes, usa as duas mãos para, com dois revólveres, atirar duas vezes mais rápido que a própria sombra! É decidido, sensato, hábil, inteligente, alguém em que se confiar e a quem temer. Mas ele prefere usar sua incrível agilidade com armas para desarmar quem está nervoso ou atirar em moscas que o incomodam: tenta evitar a violência a todo custo, quase sempre com ótimos resultados. Sossegadamente, puxa o saquinho de tabaco e prepara mais um cigarro para tragar em paz. Mas Morris acabou se rendendo ao antitabagismo e trocou o indefectível cigarro por uma inócua "palhinha" para mastigação e enfeite. Hoje, até mesmo os álbuns antigos — sobretudo os roteirizados pelo magnífico Goscinny, que conseguia fazer ao mesmo tempo trabalhos tão díspares e perfeitos como Lucky Luke, Astérix e Iznogoud, sem baixar a qualidade ou desnaturar qualquer uma das séries —, até mesmo os álbuns antigos sofreram a reformulação tão criticada por porções do público, com Lucky Luke ocupando sua escancarada boca com a risível palhinha.

É preciso reiterar que são histórias engraçadíssimas, povoadas de um humor tão sagaz e incrível quanto preciso e peculiar. E segue firme e aclamada, mais de dez anos após a morte de Morris (e quase quarenta da de Goscinny!). E por mais que videogames, filmes (como esquecer da clássica adaptação de Terence Hill em 1991?), adaptações televisivas e todo tipo de produto apareçam a todo instante, é nos quadrinhos que Lucky Luke reina e permanece sozinho como uma das melhores e mais representativas criações francobelgas de seu estilo, continuando sempre a voltar solitário para seu distante lar mas com milhões de amigos-leitores que o amam e que nunca quererão se separar dele.

A seguir: Daisy Town, longa dirigido em 1971 por ninguém menos que o próprio Goscinny (no francês original), os créditos de abertura do filme de Terence Hill (reparar na esdrúxula indumentária de Lucky Luke), a abertura de sua série televisiva, uma entrevista feita com Morris em 1993 e um documentário sobre René Goscinny.