quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Columbo

Tramas policiais muitas vezes sofrem com a desonestidade dos whodunits; ora, se todos, a todo instante, podem ser criminosos, o desenvolvimento das personagens é uma aleatoriedade e preza-se simplesmente a surpresa, a revelação. É algo um tanto desonesto, basta pensar nas novelas televisivas que, quando reprisadas, mudam o culpado original. É qualquer coisa, sem critério.

Columbo é diferente dessa rotina de convenção. A cada episódio (ou telefilme), o espectador acompanha, no início, o iter do criminoso, o que ele faz até chegar ao assassinato. Acompanhamos a execução passo a passo (ao longo das décadas de exibição, houve apenas duas exceções a essa filosofia narrativa). Ainda que não entendamos a princípio todos os motivos ou "truques" efetuados para despistar suspeitas, sabemos quem armou o plano e fez as ações.

E aí entra o Tenente Columbo, feito por um fabuloso Peter Falk em 69 telefilmes, de 1968 a 2003 (trinta e cinco anos, treze "temporadas"). Columbo é um personagem ímpar. Dono de uma capacidade dedutiva extraordinária, o humilde oficial do Departamento de Polícia de Los Angeles só encontra rival em Sherlock Holmes. Consegue enxergar minúcias, apontar paradoxos, concluir uma investigação com base
naquilo que é óbvio mas não aparente, que todos haviam desprezado.

Columbo não pega em armas — em uma ocasião, inclusive, tentou fazer com que se passassem por ele num obrigatório exame de tiros da polícia —, não participa de corridas e perseguições, não se interessa por nenhum aspecto movimentado da vida policial. Seu método consiste em andar pelos ambientes relacionados aos assassinatos, ligar um fato a outro, pensar e inquirir os suspeitos — insistentemente, sempre "lembrando" de algo no último instante e os irritando, acabando com a diplomacia inicial e despertando a agressividade dos que até então possuíam álibis perfeitos.

O policial que vemos aqui é um retrato marcante e incomum: educado, cordato, boa praça, também sempre lembrado por seus trajes amarrotados (o icônico sobretudo bege), o indefectível charuto numa das mãos, o caderninho de notas, o carro decrépito, a aparência desleixada. Inúmeras vezes é tratado mal por seu jeito simples e expansivo, por seus modos "não refinados". Já foi perguntando se estava disfarçado, questionado se de fato era da polícia e até mesmo confundido com mendigo! É que Columbo também é visto nesses momentos "não heroicos", das fragilidades do cotidiano: vai ao veterinário levar seu cachorro, visita o dentista quando um dente lhe dói, chega na cena do crime com a barba por fazer, cara de sono e comendo algum lanche apressado apenas para matar a fome... Columbo é gente como a gente, com todas as dimensões e facetas da pessoa comum. Não é sobre-humano, é um gênio que diverte por seu jeito estabanado, sua tranquilidade e impertinência (quando ele descobre/intui sobre quem é de fato o homicida, "gruda" inescapavelmente nele). Leva o trabalho a sério mas não faz disso uma tarefa estressante, anda disposto e de bom humor, com leveza, fala da família e da mulher — sempre referenciada, jamais mostrada; a não ser numa absurda série spin-off que inventaram certa feita, sem Falk e apenas com a Mrs. Columbo, que deixa de ser a esposa do dedicado policial e vira ela também uma combatente do crime.

Ao longo da série, inúmeras celebridades cometeram seus assassinatos: José Ferrer, Martin Landau, Vera Miles, Donald Pleasence, Robert Culp, Louis Jourdan, Patrick McGoohan, Johnny Cash, Ray Milland, Leonard Nimoy, William Shatner, Oskar Werner... Os episódios foram dirigidos por gente como Steven Spielberg (em seu passado televisivo setentista), Patrick McGoohan (que já matou em vários telefilmes da série, sendo quem mais nela apareceu depois de Peter Falk!), Ben Gazzara, James Frawley (diretor do primeiro e genial filme dos Muppets), Richard Quine e, não creditamente, John Cassavetes (também um assassino de respeito, em Étude in black, um dos melhores momentos da série inteira). Mas é sempre Columbo e Peter Falk quem encantam e dão o sentido à série, a despeito de todas as virtudes estilístico-narrativas de cada telefilme.

A série fez sucesso e ganhou vários prêmios e reprises, algumas tentativas de refilmagem, livros. Seus criadores, William Link e Richard Levinson, são também os autores por trás da célebre Murder, she wrote, estrelando Angela Lansbury. Mas nem eles e nem Peter Falk, apesar de bem sucedidos em outros trabalhos (sobretudo Falk, que fez muitos papéis importantes), conseguiram (ou mesmo quiseram) se livrar da fama do assombrosamente inteligente Tenente Columbo. Ainda hoje a série possui um séquito de fiéis adoradores e é objeto de análises, revisões e sátiras e paródias, sinal de sua grande aceitação na cultura popular, e não só.

Resolvi escrever este texto como uma pequena homenagem a esse colosso televisivo, na empolgação de rever uma de suas temporadas (a terceira), mas, relendo-o, acho-o incompleto e pobre, sem dar a dimensão do brilhantismo de tudo. Assim como Columbo, a qualquer momento lembro de "uma coisa curiosa que não me sai da cabeça" e acrescento just one more thing...

Finalmente, alguns momentos/vídeos interessantes da série (o último trecho é um dos meus favoritos de todos os filmes):

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Lucky Luke

Lucky Luke é uma longeva série de faroeste cômico, criada em 1947 pelo desenhista Maurice de Bevère, ou Morris. Assim como com Tex, Ken Parker e outros gloriosos ícones do western, durar tantas décadas mesmo após a virtualmente inquestionável extinção de seu gênero-base significa que estamos diante de um quadrinho especial, de um personagem de grande força e apelo. Lucky Luke não sai de moda jamais, sendo sempre alvo de mais e mais lançamentos: seu último álbum até o momento, Cavalier seul, saiu ano passado e é o incrível 115º da série; há séries spin-off dedicadas a suas aventuras quando pequeno (Kid Lucky, onde ao invés do tradicional revólver nosso mocinho empunha um certeiro estilingue!) e ao cachorro bobo e adorável e burríssimo Rantanplan, clássico suporte das aventuras de Lucky Luke com seus arquirrivais, os irmãos Dalton; houve também filmes e o mais recente saiu em 2009, com Jean Dujardin no papel-título.

Eu sou bastante familiarizado com o faroeste, desde criança, e digo sem pestanejar: foi Lucky Luke quem me introduziu a esse mundo. Foi lendo essa coleção que eu fui apresentado aos terríveis outlaws Jesse James e Billy the Kid, que conheci/descobri as diligências, os telégrafos, os sinais de fumaça indígenas (e algumas palavras, como papoose, o equivalente ao nosso "curumim"), os elixires "milagrosos" que os charlatães vendiam às pencas, os repulsivos caçadores de recompensa, o tratamento dado aos imigrantes nas novas terras de fronteira, os saloons (com toda sua fauna de dançarinas, jogadores e embusteiros), o começo da imprensa (GO WEST, YOUNG MAN, GO WEST, Horace Greely!), as falsificações de cédulas, as amplidões das pradarias, os caça-níqueis, as forcas, as divisões e ranqueamentos do exército, as guerras de propriedade (com arame farpado e demarcações fraudulentas), entre inúmeras outras coisas. Cada volume de Lucky Luke é um pouco uma aula histórica, com sua sátira pontual não sendo assim tão irônica se percebermos que a epopeia do faroeste (e praticamente toda a civilização humana, pois o faroeste é um microcosmos de todo o proceder humano, talvez) foi calcada sempre em violência e em personagens estranhamente folclóricos, algo já dados à caricatura, a uma representação extremada e mítica.

Lucky Luke é também uma série de grande visão por perceber que ser uma paródia não necessariamente descredencia a pertinência incisiva de uma narrativa. Com suas brincadeiras e releituras, Lucky Luke acaba sendo por méritos próprios um dos melhores registros do que houve naquele período (final do século XIX) nos Estados Unidos e adjacências. Diria mesmo que é uma das poucas fontes que se tem disso no Brasil, junto a escasso material: de cabeça, lembro apenas do Enterrem meu coração na curva do rio (de Dee Brown), da questionabilíssima biografia de Billy the Kid alegadamente escrita por seu matador (Pat Garrett) e as incríveis Blizzard Gazettes escritas por Gianfranco Manfredi para Mágico Vento (série publicada na íntegra pela editora Mythos, ao longo de um período de cerca de dez anos). Há também que se procurar nas obras de autores como Mark Twain e Jack London a descrição do que era estar e viver naquele tempo e espaço.

Mas além de todo o (sim) preciosismo histórico — é preciso reforçar que boa parte dos álbuns possuem fotos, documentos e textos contextualizando as coisas reais encontradas na aventura lida —, Lucky Luke tem um grande pilar de sustentação: Lucky Luke! Esse caubói magrelo e beiçudo, de roupa simples (jeans, camiseta amarela, chapéu branco, jaqueta preta, lenço vermelho ao pescoço) e que sempre termina cada trama seguindo adiante, montado em seu cavalo branco (e louro) Jolly Jumper (o equino mais sarcástico de que se tem notícia nos quadrinhos), cantando sua sina: I'm a poor lonesome cowboy / And a long way from home...

Lucky Luke atira mais rápido que a própria sombra. Em anos recentes, usa as duas mãos para, com dois revólveres, atirar duas vezes mais rápido que a própria sombra! É decidido, sensato, hábil, inteligente, alguém em que se confiar e a quem temer. Mas ele prefere usar sua incrível agilidade com armas para desarmar quem está nervoso ou atirar em moscas que o incomodam: tenta evitar a violência a todo custo, quase sempre com ótimos resultados. Sossegadamente, puxa o saquinho de tabaco e prepara mais um cigarro para tragar em paz. Mas Morris acabou se rendendo ao antitabagismo e trocou o indefectível cigarro por uma inócua "palhinha" para mastigação e enfeite. Hoje, até mesmo os álbuns antigos — sobretudo os roteirizados pelo magnífico Goscinny, que conseguia fazer ao mesmo tempo trabalhos tão díspares e perfeitos como Lucky Luke, Astérix e Iznogoud, sem baixar a qualidade ou desnaturar qualquer uma das séries —, até mesmo os álbuns antigos sofreram a reformulação tão criticada por porções do público, com Lucky Luke ocupando sua escancarada boca com a risível palhinha.

É preciso reiterar que são histórias engraçadíssimas, povoadas de um humor tão sagaz e incrível quanto preciso e peculiar. E segue firme e aclamada, mais de dez anos após a morte de Morris (e quase quarenta da de Goscinny!). E por mais que videogames, filmes (como esquecer da clássica adaptação de Terence Hill em 1991?), adaptações televisivas e todo tipo de produto apareçam a todo instante, é nos quadrinhos que Lucky Luke reina e permanece sozinho como uma das melhores e mais representativas criações francobelgas de seu estilo, continuando sempre a voltar solitário para seu distante lar mas com milhões de amigos-leitores que o amam e que nunca quererão se separar dele.

A seguir: Daisy Town, longa dirigido em 1971 por ninguém menos que o próprio Goscinny (no francês original), os créditos de abertura do filme de Terence Hill (reparar na esdrúxula indumentária de Lucky Luke), a abertura de sua série televisiva, uma entrevista feita com Morris em 1993 e um documentário sobre René Goscinny.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Entrevistas com Éric Rohmer

Interesso-me cada vez mais por entrevistas. É bom ver artistas (e gente interessante de todo tipo) respondendo espontaneamente a perguntas, questões e problemas, ouvir suas falas naturalmente, suas hesitações, gaguejares, enganos, empolgações e afins.

Se já é excelente poder ver uma entrevista bem conduzida, o prazer ainda dobra se o entrevistado é alguém que você admira, que tem muito a dizer (a você e a n'importe qui). É o caso de Éric Rohmer, cineasta historicamente alheio a aparições públicas.

Garimpando no YouTube, consegui localizar algumas especialíssimas ocasiões em que Rohmer sai da caverna e dá o ar de sua graça. E como vale a pena descobrir esses eventos! Rohmer, cineasta de gênio incrível, fala de cinema com um entusiasmo juvenil: é maravilhoso ouvi-lo relatando casos de sua carreira e de sua obra enquanto analisa seus filmes numa humilde exibição em videocassete, por exemplo; e sua alegria ao comentar os aparatos e aparelhos tecnológicos utilizados para tal ou tal efeito fílmico, do tipo de câmera usado para um determinado plano até o filtro que simula a luz específica para uma sequência cromaticamente importante!

O material que encontrei foi tão bom que não resisti a dividi-lo neste espaço, recomendando a todos que salvem bem esses vídeos antes que o YouTube mais uma vez arbitrariamente resolva se livrar de todos (por haverem infringido, como sempre, algum dos imaginários direitos sempre alegados). Além do especial (de quase duas horas) da excepcional série Cinéma de notre temps (atualização do Cinéastes de notre temps, dos anos 1960), em que Jean Douchet entrevista um recluso Rohmer em 1993 (quando estava em época de mudança de seu escritório da Films du Losange), podemos ver Rohmer em plena lucidez em 2006, poucos anos antes de morrer, entrevistado por Barbet Schroeder (seu ex-ator e produtor), além de um documentário sobre o belíssimo Conto de verão rohmeriano e mais um pequeno extrato de Rohmer dirigindo um de seus melhores filmes, A mulher do aviador. Todas as entrevistas possuem legenda em inglês.

 

Bônus: um episódio que Rohmer dirigiu da citada série Cinéastes de notre temps — bastante raro, inexistindo na internet alguns anos atrás.

sábado, 14 de setembro de 2013

Grandes ilustradores: John R. Neill

Após o estrondoso sucesso de The wonderful wizard of Oz, Frank Baum decide ceder ao apelo de seu público (e de seu bolso) e dar continuidade à série sobre as aventuras envolvendo a terra e os personagens de Oz. O segundo livro, The marvelous land of Oz, sai quatro anos após seu antecessor — fazendo dessa continuação a mais "demorada" da coleção: quase todos os livros saem apenas um ano após o anterior.

Pelos prefácios das obras, é fácil entender por que Baum criou essa certa resistência: assim como Conan Doyle e tantos outros autores de personagens muito marcantes, Baum resistia a ter seu nome associado a apenas uma criação. São divertidos (e enternecedores, de certo modo) seus sutis pedidos aos leitores: queria escrever outras obras, sair um pouco do universo de Oz. Não conseguiu, mas fez o possível para condensar várias ideias e personagens diferentes ao longo da saga, tentando (e conseguindo) definir um mundo "ilimitadamente limitado": as fronteiras de Oz são infinitas, as possibilidades de aventuras e acontecimentos e pessoas diferentes são infinitas, a imaginação é infinita.

No segundo livro, Dorothy não aparece. É a maneira de Baum começar sua brincadeira. Uma continuação sem a protagonista original! Em seu lugar, conhecemos outras personagens (e revemos outras tantas), sendo-nos apresentada ao fim do relato a princesa Ozma, governante de Oz, que irá aparecer doravante em todos os livros. Baum gosta de introduzir muitas personagens novas e fazer as antigas aparecerem em relatos, lembranças ou mesmo pessoalmente.

Após seu desentendimento com Denslow, artista responsável pelo ápice da iconicidade gráfica do mundo de Oz, Baum entra em acordo com John R. Neill, ilustrador prolífico de jornais e revistas, que entra em Oz para não mais sair: são dele os desenhos de todos os livros de Baum sobre Oz, exceto o primeiro (feito por Denslow), e mesmo após a morte de Baum ele continuou a ilustrar os livros seguintes — os dezenove de Ruth Plumly Thompson, admiradora de Baum, e três de sua própria autoria! Total entrega, interrompida apenas com sua morte, em 1943.

Neill sai da sombra de Denslow e remodela Oz. Sua Dorothy, por exemplo, é bem diferente: a de Denslow é uma menininha gorducha e baixinha, aparentando ter uns seis anos; Neill "espicha" Dorothy e a torna mais mocinha, feminina, vaidosa, crescida, por volta de uns dez anos (apesar de o texto de Baum fazer constantes referências a ela como uma little girl). Ozma é também uma jovem bonita e talvez próxima da idade dos leitores que acompanharam as aventuras de Oz desde o começo, na virada do século XIX para o XX (em alguns livros da coleção é proposta a discussão metafísica da idade de Ozma, que aparentemente não envelhece).


Com a profusão de personagens e ambientes criados por Baum, Neill pôde exercitar sua arte em muitos desafios bem sucedidos: crianças, fadas, monstros, castelos, animais, criaturas encantadas de todo tipo, cores irreais, não houve o que ele não fizesse. Experimentava com nanquim, aquarela, várias formas de pintura e concepção visual. Seu trabalho é de um esplendor incrível, e é uma pena que não tenha o reconhecimento do de Denslow, por estar associado a obras hoje menos difundidas de Baum — e enquanto The wonderful wizard of Oz ganha sempre inúmeras edições, as obras seguintes da série costumam vir amontoadas em edições simples, sem as ilustrações e portadas originais, o que é lastimável. Ao menos é possível localizar na rede a maior parte (se não todas) das magníficas ilustrações de Neill (não só as de Oz), das quais a pequena quantidade reunida aqui é pálida amostragem.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Don Quijote de la Mancha

Breves impressões do magnífico Don Quijote de Cervantes, escritas respectivamente em 2 de fevereiro, 10 e 26 de abril de 2011, quando pude ler finalmente esse livro colossal:

Há cerca de três semanas resolvi perder um medo antigo e ler de uma vez por todas o Don Quijote (ou Dom Quixote) de Cervantes. O livro sempre me pareceu ser ótimo, todos comentam maravilhas dele e é considerado por todo mundo uma das melhores ficções já escritas; mas minha preguiça se devia a um problema antigo meu: sou MUITO lerdo para ler. O Quijote tem mais de um milhar de páginas, e isso me parecia muito desanimador. Mas aí tomei como resolução para o ano novo ler algumas pendências antigas acumuladas há anos. A edição do Quijote que estou lendo, a ganhei do meu pai em 2007. E vou falar: que livro MARAVILHOSO! Em todos os sentidos.

Primeiramente eu vou destacar a beleza do livro da Alfaguara, a edição em homenagem ao quatrocentenário da primeira parte do livro; além de um acabamento editorial perfeito, a edição tem mil apêndices, as portadas originais, explicações detalhadas sobre os arcaísmos da obra, um glossário extremamente completo e útil, mais o texto integral em espanhol com apontamentos que esclarecem, solidificam o entendimento e aguçam a curiosidade, aumentam a vontade de contextualizar o processo de escrita de Cervantes, suas fontes, influências, deixam claro as piadinhas de gramática, os erros (deliberados ou não) cometidos pelas personagens, as sutilezas empregadas na construção das frases, e tudo isso sem parecer intelectualóide, pedante, acadêmico (naqueles sentidos ruins), dando novos sentidos à compreensão do texto, auxiliando na busca por uma experiência completa de leitura. Vou dar um exemplo: no começo da obra, Cervantes descreve com muito detalhamento as roupas e modo de vida do nosso célebre fidalgo, e é preciso peneirar essas citações para entender como era absurdo para alguém JÁ NAQUELA ÉPOCA se deparar com o projeto de cavaleiro que era Don Quijote, que já usava roupas foras de época mesmo naquele início do século XVII, que tinha costumes assombrosos que já eram desconhecidos daquela geração etc.; sem essa ajuda, o leitor não se daria conta do IMENSO estranhamento das personagens ao encontrarem o fidalgo, e por que ele parecia sempre tão absurdamente deslocado e ultrapassado e ridículo.

Comecei falando da edição e já pulei para a história, não tem jeito; ela é tão lindamente narrada que eu, na minha proverbial vagareza, já devorei quase trezentas páginas e estou entrando na quarta e última parte do primeiro livro. Don Quijote e Sancho Panza são duas criações magníficas, donos de idiossincrasias e profundidades inigualáveis, funcionando por diversos movimentos que os fazem ser arquetípicos em praticamente todas as frontes: no idealismo, na amizade, na confiança, na ingenuidade, na iconoclastia fantasiosa, no valor, que, afinal, os dois possuíam e possuem, pois não morrerão jamais, vivendo com muita justiça a fama de serem dois dos mais famosos tipos da literatura em todos os tempos.

Por preconceitos infundados, imaginamos que, por tantas e tantas adaptações e referências, histórias clássicas assim já não possuem interesse ou nada de novo têm a nos mostrar; esse é o engano mais estúpido em que podemos incorrer, pelo menos em casos como o do Quijote cervantino, obra magnífica, estupenda, delirante, majestosa e que em todos os episódios e páginas merece o rol de elogios que o sonhador fidalgo consagra sempre à sua imagem de donzela, a Dulcinea que em verdade é Aldonza.


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Seguindo na leitura de Don Quijote, o caráter insólito de várias personagens me chama a atenção. Há alguns fenômenos peculiares que ocorrem com elas, e isso lhes dá uma dimensão muito particular. Alguns exemplos:

- Todos que zombam de Don Quijote gostam de ridicularizá-lo tratando-o por grande cavaleiro e a Sancho por exímio escudeiro; mas, velados na sua hipocrisia, favorecem a imaginação dos dois companheiros, e assim acabam tratando-os melhor do que se simplesmente desmentissem seus credos. Há uma cena na casa de duques, em que Don Quijote e Sancho são levados a crer, de olhos vendados, numa farsa de artifícios teatrais; não desconfiando da peça que lhes é pregada, eles terminam a tarefa com grande alegria por fazê-la chegar ao bem sucedido término. Então eu questiono: o que fizeram a eles é moral? Porque no final das contas eles ficaram muito satisfeitos, e cônscios do valor de sua jornada e ação.


- Quando Don Quijote se depara com algo desconhecido ou inexplicável, começa logo a falar dos encantadores perversos que o perseguem. O que pode parecer simples fantasia é na verdade a maior das coragens: reconhecendo como verdadeiro apenas aquilo que se lhe parece como tal, Don Quijote enfrenta o desconhecido com ânimo reforçado, como a dizer: "certas coisas encantadas não posso vencer; as demais, enfrento de peito aberto e valor posto à prova".

- Os delírios de Don Quijote não me parecem ser tanto fruto de loucura, mas de uma percepção distorcida da realidade. No fim das contas, ele de fato tenta consertar os tortos do mundo e ajudar aos necessitados, mesmo que para isso corra o risco de sofrer a incompreensão do mundo que o julga anacrônico e estapafúrdio. Mas o que é mais errado, ser um cavalheiresco cavaleiro andante numa época errada ou ser injusto, vil e sórdido como todos que se divertem tratando-o como uma aberração digna de risadas?

- Sancho por vezes tem seu amo como louco, outras vezes é reputadamente tido por muitos como ainda mais fora do juízo que seu mestre. Mas para qualquer efeito ele está sempre a postos, e é injusto tratá-lo como um simplório mentecapto, quando ele demonstra crescer a cada aventura, até falando de maneira mais polida, sonhando com grandeza, trazendo a lógica humilde da vida prática a situações que são descritas de maneira tão ímpar por Cervantes que somos até gratos a Sancho por ele nos lembrar que nada é o que parece (ainda que ele mesmo acredite no contrário, por vezes, como no caso do singular encantamento de Dulcinea).

- Há que se destacar a beleza inesperada dos conselhos que Don Quijote dá a Sancho quando o fiel escudeiro está prestes a finalmente tornar-se governador de uma ilha.

Minha leitura acaba provavelmente no fim do mês. Mas tudo isso cavalgará comigo para sempre no Rocinante imortal da minha lembrança. 


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Eu estou no fim da leitura de
Don Quijote, a menos de cinqüenta páginas do término, e a sensação é dúbia: por um lado sinto-me extremamente feliz por ter lido uma obra tão linda e fascinante, e por outro é como se eu estivesse deixando uma parte de mim com a leitura. Acompanhei durante mais de três meses os devaneios do fidalgo e seu escudeiro, os dramas e comédias de que foram vítimas e também a vida de mil pessoas com que se depararam. E aí acabo assim, numa semana qualquer, já pensando no próximo livro a ler. Don Quijote morto mas imortal.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Minhas influências de Resnais

Uma das melhores coisas é pesquisar influências, influenciados e influenciadores. Se há alguém em que você confia, ou um artista que você admira, procurar o mundo que cerca essa pessoa e suas bases (de pensamento) é fascinante e esclarecedor. Foi graças ao Deep Purple que eu conheci Rainbow, Blackmore's Night, Whitesnake etc. Seguindo os passos de Truffaut interessei-me pelas obras de Henri-Pierre Roché, Ray Bradbury, David Goodis, Henry James. Os exemplos abundam e abundarão, mas é difícil que alguém tenha mais "méritos" no meu garimpo cultural que o nonagenário Alain Resnais.

Resnais é, há muitos anos, uma das pessoas que mais me interessam culturalmente. Cada opinião sua, cada sugestão ou manifestação, traz à minha atenção um foco diferenciado e instigante sobre o qual me debruçar. Por se interessar por inúmeros segmentos da expressão artística humana, Resnais tem muito a falar e a mostrar em mil campos que me interessam. Vou tentar falar brevemente sobre algumas coisas que procurei e consumi graças ao velho Alain.

Cinema

Além de seus magníficos filmes, Resnais abriu minha cabeça em muitos outros campos. Os roteiristas de seus primeiros longas (Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet) viraram também cineastas e fui atrás de seus filmes. De Duras, vi Nathalie Granger e Le camion. De Robbe-Grillet, o excelente La belle captive, que me hipnotizou já em seus momentos iniciais. E seu antigo parceiro Chris Marker? Quem conferir La jetée e Sem sol, entre outros, só terá a agradecer o prazer de ter olhos.

Além disso, seu carinho e atenção para com os atores de seus filmes me fez empolgar-me não só com sua "turma" habitual (Sabine Azéma, André Dussollier e Pierre Arditi) como abriu meus olhos para intérpretes como Lambert Wilson, Claude Rich, Isabelle Carré, Mathieu Amalric, Delphine Seyrig, Geraldine Chaplin, Emmanuelle Riva. O critério é simples e quase sempre funciona: se Resnais utilizou tal ator, tal ator é uma pessoa a se notar. O faro resnaisiano virtualmente nunca se engana.

E há o casal Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri, que não apenas roteirizaram dois filmes de Resnais (Smoking / No smoking e Amores parisienses) como co-estrelaram um. A dupla depois passou a atuar em, roteirizar e até dirigir outros filmes. É preciso ver seus filmes e obras. E eu sequer os conheceria, não fosse por Resnais e sua generosidade em usar dois jovens roteiristas para escreverem dois de seus filmes, entre quinze e vinte anos atrás.

Quadrinhos

 Resnais é um grande amante de quadrinhos. Foi um dos fundadores na França da Sociedade dos amigos dos quadrinhos (Société des amis de la bande dessinée), e a todo instante deixa nítido esse amor pelas HQ. Um de seus mais divertidos filmes, I want to go home, é simplesmente uma ilustração desse carinho pela arte sequencial. Para roteirizar essa obra, Resnais chamou ninguém menos que o grande quadrinista americano Jules Feiffer. E é difícil não se empolgar com as constantes referências a Schulz, a Caniff e outros mestres dessa arte, e também é difícil não se interessar pelo Popeye de Segar (com direito a Depardieu fazendo cosplay do personagem numa cena) e pelo próprio Feiffer, que também envereda pela animação (!), criando "consciências animadas" das personagens do filme.

É ótimo ver um desses respeitados intelectuais como Resnais abraçando causas como a que versa a não-demonização dos quadrinhos. Resnais chegou a declarar que um de seus grandes sonhos irrealizados é fazer a adaptação cinematográfica dos X-Men! Sua sincera apreciação pela "banda desenhada" é um alento e um farol: então também preste-se a devida referência a suas dicas nessa área! (E divirtamo-nos com as brincadeiras do diretor, como a abertura de Smoking / No smoking).

Literatura

Uma das marcas iniciais de seu cinema era trazer roteiros originais feitos por escritores profissionais, sem experiência na confecção cinematográfica. Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Jacques Sternberg, Jorge Semprún, Jean Cayrol, alguns dos nomes com que trabalhou nesse período, são nomes relevantes e importantes para qualquer estudo da literatura contemporânea francesa (ou mundial). Ir atrás dos romances de Duras e das obras e roteiros de seus colegas "resnaisianos" é adentrar um mundo de infinitas possibilidades literárias e formas diferentes de se exprimir e impressionar.

Há também que se destacar o dramaturgo Alan Ayckbourn, a quem Resnais sempre se volta, e o caso inédito de Christian Gailly, autor de L'incident, único romance adaptado por Resnais (e agora Resnais também vem escrevendo em parte seus filmes), origem de seu belo Ervas daninhas. Ainda não li Ayckbourn, mas encomendei e li L'incident, excepcional relato detentor de uma voz absolutamente ímpar, que eu nunca havia realmente visto na ficção escrita.

Música

O filme Amores parisienses é todo ele composto de canções populares francesas, indo de Piaf a Gainsbourg, de Alain Souchon a Jacques Dutronc. Foi nesse filme que eu tive meu primeiro contato com France Gall e com o maravilhoso Julien Clerc, compositor de vitalidade e talento estupendos, totalmente obscuro no Brasil e a quem eu jamais iria chegar não fosse por Resnais. Graças a ele e a esse encantador filme, todo um mundo da canção francesa, longe dos tradicionais eixos "de exportação" (ainda que haja Aznavour e congêneres), apareceu para mim e eu descobri até mesmo verdadeiros mitos de que simplesmente não se fala no Brasil, como Claude François.

Além disso, os compositores originais de seus filmes. Mark Snow, "anônimo" autor da música-tema de Arquivo X, trabalhou mais de uma vez com Resnais e cunhou pérolas que podem ser ouvidas por exemplo aqui (e no trailer abaixo colocado); o célebre Penderecki compôs para Eu te amo, eu te amo; Hiroshima mon amour tem trilha de Giovanni Fusco e do genial Georges Delerue, famoso por sua parceria com Truffaut e pela música de O desprezo.
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Poderia ainda falar do desejo de conhecer pintura e pintores que seus curtas Van Gogh, Guernica e tantos outros despertam, mas não posso me estender mais na louvação: basta procurar os filmes de Alain Resnais, o interesse vem naturalmente a partir daí. Apenas resta agradecer ao cinema por ter acolhido esse grande homem, que nunca desanima em fazer e disseminar coisas belas. Que viva longamente.



Atualização (01/05): Texto sobre o penúltimo filme de Resnais (e um pouco sobre sua carreira), Ervas daninhas.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Luluzinha e Bolinha

Assim como a Turma da Mônica, Menino Maluquinho, Disney e outros personagens de quadrinhos, Luluzinha e Bolinha não só estão há décadas em circulação (e portanto são conhecidíssimos) como também passaram por muitas mídias e repaginações: desenhos animados, versões em mangá etc. Mas, assim como virtualmente todo personagem de quadrinho que vai para outros rumos, sua melhor versão continua sendo a original — ou melhor, a "evolução" de sua versão original: Luluzinha foi criada em 1935, pela americana Marjorie "Marge" Henderson Buell (essa moça segurando na foto uma simpática boneca de sua famosa criação) para ser uma espécie de sucessora de Pinduca (Henry, no original), o garotinho mudo que causou sensação nos quadrinhos dos anos 1930. Lulu, então, começou muda, de traço mais diferente e "rechonchudo", sem os amigos a que nos acostumamos. Aos poucos foi adquirindo sua identidade e suas principais marcas, principalmente no período em que seu artista-chefe foi o mítico John Stanley.

No Brasil, os amigos Lulu Palhares e Bolinha (Tubby, em inglês) França — cujos sobrenomes originais são respectivamente Moppets e Tompkins — sempre gozaram de grande popularidade. Houve até produção nacional de suas histórias, pois a carência por material novo era tanta que foi preciso arregimentar também esforços brasileiros para suprir os anseios dos leitores. E a influência dos quadrinhos era nítida: em músicas (como a exposta mais abaixo), em vendagens das revistas, e até em expressões que viraram patrimônio nosso, como a clássica definição de um complô masculino, Clube do Bolinha (que ficou famoso nos gibis pela inscrição "menina não entra").

As histórias de Lulu e Bolinha não possuem uma arte tão refinada (apesar de os desenhos serem bastante graciosos) e nem tramas rebuscadas, mas isso nunca importou: é tudo tão bem amarrado e divertido que é difícil não se deixar levar pelas brincadeiras, trapaças, esquemas, planos, confusões, mal entendidos e todo tipo de aventura cotidiana da turminha de crianças bagunceiras e os adultos neuróticos que as cercam. Conhecidos arcos narrativos são repetidos com frequência e com isso desenvolve-se um delicioso storytelling: histórias de bruxas (Alceia e Memeia) contadas por Luluzinha ao indisciplinado e reclamão Alvinho; Bolinha e seu primo menor Carlinhos; seu Miguel, o obsessivo e quase psicótico caça-gazeteiros; a turma da rua de baixo importunando os meninos do clube do Bolinha (Bola, Juca, Careca e Zeca); o detetive Aranha (Bolinha) versus o pai da Luluzinha (que, incrivelmente, sempre é o real culpado dos problemas); os extraterrestres que são amigos de Bola e só por ele são vistos; tentativas de Lulu e sua melhor amiga Aninha de entrarem no clube dos meninos; e muitas outras situações habituais ou especiais.

Após algumas décadas sumidos daqui (a não ser em republicações específicas e semiluxuosas de álbuns históricos), Luluzinha e Bolinha deram as caras novamente nas bancas há cerca de dois anos, pela editora Pixel. E estão fazendo grande sucesso, com direito a lançamento de especiais (dedicados ao amor do Bola, Glorinha, ao Aranha, às histórias da pobre menininha contra as bruxas...) e duas revistas mensais, que ainda abriram caminho para a republicação de mais títulos clássicos sumidos há eras das bancas do Brasil: os personagens da Harvey (Riquinho, Gasparzinho, Brasinha, Bolota, Brotoeja e afins), muito inferiores a Lulu e Bolinha mas com considerável demanda dos leitores saudosistas.

Mas Lulu e Bolinha não devem ser vistos nesse balaio; são quadrinhos realmente preciosos, muito engraçados ainda hoje, bem bolados, empolgantes. E ainda que haja desenhos animados bacanas (como os expostos abaixo) ou novidades como a em minha opinião pavorosa modernização estilo mangá "Lulu Teen" (que modifica todos os personagens e desvirtua todo o espírito da coisa, além de ser uma produção evidentemente medíocre e oportunista), os quadrinhos da menininha de cabelo encaracolado e boina e o menininho gordo com roupa de marinheiro permanecem a melhor pedida. E é emocionante perceber que, tempos e costumes mudando sempre, essa turminha continuará como sempre e isso não fará dela anacrônica, ultrapassada ou incompreensível, pelo contrário: crianças são sempre crianças.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Grandes animadores: Norman McLaren

Se a animação é criar movimento a partir de desenhos parados, Norman McLaren é um de seus expoentes mais criativos: sua técnica mais famosa consistia em desenhar diretamente na película, fazendo assim uma movimentação bastante peculiar e característica.

Lembro de meu primeiro contato com Norman McLaren: foi em 2007, quando consegui, num sebo próximo à faculdade, um exemplar do querido Os filmes de minha vida, de François Truffaut. Mesmo já conhecendo Hawks, Lang, Renoir, Hitchcock e tantos outros cineastas, nesse livro tive meus primeiros reais contatos com Samuel Fuller, Sacha Guitry, Jacques Doillon... e Norman McLaren.

Apesar de ser um animador famosíssimo, na época eu ainda não o conhecia; e fiquei bem curioso com o texto de Truffaut, sobre um curta-metragem de cinco ou seis minutos estrelado por uma galinha desenhada direto na película do filme! Truffaut dizia que apesar da duração desses filmes, seu diretor era sem dúvida um dos maiores do mundo. Curioso, já que Truffaut foi sempre meu principal mentor na crítica cinematográfica, fui atrás do curta. Eu usava o emule na época, e deixava vários filmes em processo de "baixamento" enquanto estudava de manhã, longe de casa; ao chegar, estava tudo lá me aguardando. Lembro da alegria que era ver três ou quatro filmes curtinhos de Norman McLaren por dia, com sua inventividade delirante, seu aspecto artesanal apaixonante, as possibilidades que eu via nesses curtas, o quanto aquilo tudo era novo e impressionante para mim.

Aos poucos fui vendo tudo o que achava dele. Vendo, revendo, revendo novamente. Em 2008, falei dele num texto da Zingu!. McLaren virou um ídolo meu. Um exemplo de inovação, brilho, gênio. Baixava documentários, via entrevistas, procurava os curtas perdidos (ainda me faltam uns dez).

A empolgação não diminuiu com o passar do tempo. Synchromy, um dos curtas que posto abaixo, continua sendo uma das minhas animações favoritas, e um filme que faço questão de colocar no meu top 100 pessoal. Adoro as brincadeiras que ele faz com o som, a imagem, a duração espaço-temporal de uma nota, a exposição do tempo de um áudio.

Além desse filme (e de outros do tipo, como a série Lines), McLaren fez curtas como o referido por Truffaut (Hen hop), stop-motion (com desenhos/objetos/pessoas, como A chairy tale) e experimentos com música e metalinguagem cinematográfica (como a série Animated motion, em que explica princípios da dinâmica animada). Também fez cinema live action, como suas imprescindíveis excursões ao mundo do ballet. Por Neighbors, critica ácida (mas bem humorada) à guerra, ganhou o Oscar... de documentário curta-metragem! Incansável artista, o canadense dedicou sua vida à investigação das possibilidades da arte da animação, e reconhecer seus méritos não é apenas questão de justiça: é uma constatação evidente a qualquer pessoa que tenha o prazer de conhecer seus trabalhos. A seguir, alguns de seus filmes mais representativos:

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Grandes ilustradores: Ziraldo

É muito difícil falar do Ziraldo.

Todo mundo o conhece, mas sua obra é incrivelmente vasta e variada. Dos poucos desenhos expostos aqui, pode-se ter uma ideia dessa versatilidade: ilustrações de livros (seus ou de outros escritores), cartuns, cartazes e pôsteres (para cinema, eventos e até campanhas de conscientização/educativas), capas... Não há alguma mídia gráfica por que Ziraldo não tenha passado.

Em comum, seu traço extremamente característico. Seja uma chamada da Sessão da Tarde ou um desenho feito na hora (esse Maluquinho ele fez para mim, em segundos), o estilo ziraldiano é inconfundível. Os rostos, bocas, mãos, balões de diálogo, a caligrafia e seus experimentalismos, nenhum outro artista do Brasil ou do mundo tem arte parecida. E isso a serviço de uma expressão artística incansável, há décadas e décadas produzindo bom humor, lirismo literário, quadrinhos, charges, mil coisas.


Ainda que suas opiniões sobre assuntos gerais sejam por vezes controversas (seus comentários sobre o racismo, machismo, Pasquim e ditadura militar etc.), como artista ele é virtualmente incriticável. Extrema beleza, graça e desenvoltura, em trabalhos tão diferentes quanto os desenhos para uma nova edição do lindo Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, seus quadrinhos (desenhados por ele e/ou equipe) como Pererê e Menino Maluquinho, suas brincadeiras eróticas para a Playboy... Ziraldo, esse mineiro cujo nome, como disseram, é em si um excelente pseudônimo, é ilustrador tão especial que até sua assinatura, conhecidíssima, passa por caprichado desenho.


Em seus recentemente completados 80 anos, Ziraldo permanece um dos orgulhos da arte gráfica brasileira. Autor de inúmeros livros premiadíssimos, como O Menino Maluquinho, Uma professora muito maluquinha e Flicts, seus feitos gozam de perene popularidade: as edições vendem bem, Ziraldo não para de dar entrevistas (como a daqui de baixo), não para nunca de trabalhar e de receber as demonstrações de afeto, estima e carinho do público, seus fãs e críticos. Coletâneas de suas obras são constantemente lançadas ou reeditadas, livros, sites e blogs não economizam espaço e elogios para elencar sua coleção de memoráveis peças, patrimônio cultural de grande valor para quem preza desenho e ilustração. Ou, mais amplamente, para quem acredita que é possível transformar uma folha em branco em vida.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Doug

Doug é uma série animada americana bastante popular no Brasil. O segredo para seu sucesso é sua extrema simplicidade: vidas simples, personagens simples. Nada simplório, contudo. Por trás da trivialidade cotidiana das tramas e acontecimentos, todo um mundo se descortina, um pouco o que se passa com Peanuts, onde a todo instante nos lembramos que esse quase minimalismo narrativo é sim uma poderosa fonte sugestiva: em Doug, as personagens vibram e se eternizam por sua perfeita constituição e desenvolvimento.

O personagem-título é um garoto barrigudinho e narigudo que se muda para uma cidade nova (Bluffington) e lá deverá fazer novos amigos e lidar com sua família e com suas pequenas crises de timidez, introspecção e criatividade. Conseguirá satisfatoriamente superar suas fobias e viver tranquilo e feliz? Ao longo dos 52 episódios produzidos pela Nickelodeon, essa tarefa deverá ser efetuada por nosso jovem amigo. E é um prazer acompanhar seus erros, êxitos e tentativas.

Há uma grande verdade em Doug, em seus pensamentos repletos de dúvida, seu inato inconformismo e sua doçura involuntária. No trato com o grande amigo Skeeter (Mosquito) Valentine, na sua involuntária rivalidade com o implicante Roger Klotz, nos seus medos envolvendo constrangimentos escolares, na sua curiosa relação com a "alternativa" irmã Judy, e, principalmente, na sua paixão secreta pela amiga Patti Mayonnaise seus modos e sua cabeça vão sendo revelados ao espectador, que, junto ao garoto, sofre, torce e se encanta com o dia a dia daquela localidade, com essa incompreensão própria da infância/começo da adolescência, com o caráter admirável de Doug e sua capacidade de imaginar problemas (ou solucioná-los). É agradável e inspirador vê-lo às voltas com suas aventuras, no colégio, em casa escrevendo seu diário, sonhando seus alter egos (Homem Codorna, Smash Adams etc.), brincando com o cachorro Costelinha (Porkchop) ou em qualquer outro ambiente, sempre importante para ele e, claro, um passo evolutivo em sua jornada.

Meus episódios favoritos são aqueles em que Doug está sozinho com Patti (como este), temendo desagradá-la, feliz por estar com ela por perto, receoso de declarar-se inoportunamente. A tensão entre os dois, o carinho evidente de ambos e as possibilidades do casal são uma combinação magnífica, ressaltada pela delicada animação da equipe de Jim Jinkins (criador do desenho), com suas cores calmas e expressiva movimentação de corpos e rostos. A naturalidade é tanta que por vezes parece que a animação nem existe, que aquilo tudo, com pessoas coloridas e caricaturadas, é uma filmagem de um acontecimento verídico. E não o é? A honestidade de Doug é que permite que essas criaturas nos fascinem e interessem. E, assim como Don Quijote não é apenas um herói de papel, Doug existe também fora de seu mundo desenhado.

A Disney adquiriu os direitos da série e fez dezenas de episódios de continuação, alterando fatos e personagens do universo "douguiano". Infelizmente isso amenizou a sinceridade do relato e transformou a coisa numa simples novelização de dramas adolescentes, ao gosto de tantos seriados teens da moda. Mas a série da Nickelodeon permanece como um testemunho de arte insuperável no retratar do nosso mundo numa época da vida em que não temos consciência da grandeza das coisas pequenas. E não importa se já fomos ameaçados por um valentão na aula ou se ficamos um dia inseguros de comer na casa de nosso alvo romântico, se precisamos fazer ballet ou ouvir as histórias do vizinho, e nem se estamos entediados numa viagem com os pais ou nervosos com um tipo de alimento — tudo isso poderia ocorrer conosco, e em tudo isso nos reconhecemos em Doug.

Vídeos: a genial abertura do programa, um clipe da célebre banda Os Beets e a canção que Doug compôs para Patti (mas ela não pode nunca saber que essa música existe!).

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Deep Purple

O que faz a identidade de uma banda?

Ao contrário de artistas "solo", bandas nem sempre possuem uma evolução analisável: além das tendências de mercado e coisas habituais a qualquer músico, elas sempre lidam com trocas de integrantes e outros fatores que podem ou não descaracterizá-la, torná-la um simples "selo", um monte de gente tocando junto sob um nome qualquer, que não diz nada realmente.

Aí deparamos com Deep Purple, banda inglesa fundada em 1968 e que teve incríveis oito formações (ou "marks") diferentes. São elas:

MK I - Rod Evans (vocais), Nick Simper (baixo), Jon Lord (teclados), Ian Paice (bateria), Ritchie Blackmore (guitarra)
MK II - Ian Gillan (vocais), Roger Glover (baixo), Jon Lord, Ian Paice, Ritchie Blackmore
MK III - David Coverdale (vocais), Glenn Hughes (baixo, vocais), Jon Lord, Ian Paice, Ritchie Blackmore
MK IV - Tommy Bolin (vocais, guitarra), David Coverdale, Glenn Hughes, Jon Lord, Ian Paice, Ritchie Blackmore
MK V - Joe Lynn Turner (vocais), Roger Glover, Jon Lord, Ian Paice, Ritchie Blackmore
MK VI - Joe Satriani (guitarra), Ian Gillan, Roger Glover, Jon Lord, Ian Paice
MK VII - Steve Morse (guitarra), Ian Gillan, Roger Glover, Jon Lord, Ian Paice
MK VIII - Don Airey (teclados), Steve Morse, Ian Gillan, Roger Glover, Ian Paice

Essas formações eram alteradas conforme as conveniências da época. Umas duravam mais, outras duravam bem menos. O "marco" VI foi apenas durante uma turnê, não tendo lançado nenhum registro oficial, o V legou apenas um álbum de estúdio e o II repetiu-se em duas ocasiões. Com exceção do MK IV, todas as formações tiveram obrigatoriamente entre seus componentes Ritchie Blackmore (um dos fundadores da banda) ou Ian Gillan. Ian Paice é o único membro que esteve com a banda durante toda a sua existência.

As razões para tantas mudanças são muitas. Por exemplo, a formação inicial, mais voltada a um som de forte influência erudita (afinal, Jon Lord, então líder da banda, é músico de formação clássica), não durou tanto porque, sabemos, é normal uma banda de jovens ser lançada "no impulso", sem tanto planejamento, afinal; ao longo dos anos na estrada, a banda vai se modificando até alcançar o entrosamento perfeito entre seus membros e seus planos musicais. Curiosidade: Rod Evans, o primeiro vocal, tentou montar nos anos 80 um "falso Deep Purple", usando o nome da banda em várias apresentações que nada tinham a ver com o Purple "oficial" — aproveitando-se para isso da coincidência que foi a "extinção" do verdadeiro Deep Purple entre 1976 (MK IV, imediatamente após a morte prematura de Tommy Bolin) e 1984 (MK II-b, ou seja, o primeiro retorno da formação possivelmente mais clássica da trupe).

Os vaivéns de Blackmore e Gillan são explicáveis por uma simples mas constante "guerra de egos". Músicos alegadamente temperamentais, suas brigas motivaram esses frequentes remanejamentos, culminando com a definitiva saída de Blackmore em 1993, ano em que Joe Satriani serviu de "estepe" para a banda durante uma turnê em que não se havia ainda contratado efetivamente um novo guitarrista. Blackmore, durante a década de 70 e 80 e após partir de uma vez por todas, dedicou-se principalmente à sua genial banda Rainbow. Nos períodos em que não estiveram na banda seus outros integrantes também concluíram outros projetos: Ian Gillan Band, Whitesnake (que chegou a reunir Coverdale, Lord e Paice, quase um segundo Deep Purple) etc.

Mas o que mais impressiona é que, de alguma maneira, a identidade do Deep Purple (nome advindo desta música de Bing Crosby, velha favorita da avó de Blackmore) permaneceu íntegra durante todas essas décadas e formações. Dá para sentir que a funkeada fase Coverdale-Hughes não era em estrutura tão diferente das diversões de escala de Blackmore com Gillan e Glover, e os teclados de Jon Lord sempre flertaram com o erudito e com sua particular visão de velocidade e ritmo, perceptível também em seu último e brilhante álbum Beyond the notes, quando já não fazia mais parte da banda. Ian Paice também sempre deu aquele familiar tom de afeto a cada canção e apresentação, contribuindo com grande empenho e talento para a identidade Purple. A chegada de Steve Morse muda um pouco o cenário até então dominado por Blackmore, mas, encontrando seu rumo na banda, Morse também ficou inegavelmente com uma "cara" de Deep Purple, bastante diferente de seu trabalho com a Steve Morse Band.

É um fenômeno a se estudar. Mas o que interessa saber é da música, e nisso Deep Purple sempre errou muito pouco. Quase todos os seus discos são testemunhos de uma profunda vitalidade e empenho com a beleza e a expressão, a força da música, a potência do som. Apenas para ilustrar esse fenômeno curioso e fascinante, seguem cinco (ou seis) músicas das mais belas já compostas/gravadas pelo Purple, todas não apenas de álbuns diferentes, mas também... de formações diversas! Respectivamente, canções do MK I, MK II, MK III, MK IV e MK VII.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sargento Getúlio

Às vezes nos esquecemos que o Brasil é antes um continente que um país, e que em toda a sua extensão temos mil sotaques, aparências, culturas. Há grandes distâncias, grandes abismos. Um livro como Sargento Getúlio faz pensar também em outras distâncias além das geográficas, e ao mesmo tempo sua regionalíssima história nordestina é tremendamente universal: converge-se no romance de João Ubaldo Ribeiro o universalismo com o exclusivo de uma terra e época. Pouco mais de quarenta anos após sua publicação original, esse multidimensionalismo ainda é extremamente novo, original e ousado, por vezes chocante.

Pois em Sargento Getúlio a premissa simples (espécie de jagunço a serviço do coronelismo transporta um prisioneiro de um ponto a outro em Sergipe) como que se abre num despetalar de vozes e consciências que é mais impressionante porque quase unificado na figura-título, narradora da história. Diferente de todos os narradores em primeira pessoa, Getúlio solta seu fluxo de pensamento sem rigidez de estilo, parecendo por vezes uma carta de confissão, um delírio, uma confidência, um desabafo, um manifesto, uma ameaça (poderia continuar indefinidamente). Por meio de uma prosa atabalhoada, define-se o caráter, o histórico e os ideais (e as ações e compromissos) do sargento, de seus colegas e seus conhecidos — inclusive o do "coisa", o "traste", o transportado, a quem Getúlio despreza e chega a lhe deformar o rosto, numa cena de violência impactante (superada por outras). E a política, os desmandos, o jogo dos graúdos (e do "chefe" de Getúlio), o papel da imprensa? Tudo lá.

A violência é, aliás, uma das tônicas do relato. Um falar sujo, forte e definitivo, ainda que atropelado, desordenado e amórfico. Os adjetivos abundam, mas não é um romance de adjetivação. É uma experiência essencialmente sensorial, narrativa oral que em verdade não se parece com a transposição de diálogos mas como um encadeamento estilístico de ideias que só encontram sentido quando se apresentam literariamente. Mas é bom de imaginar os sons que surgem das linhas, e bom ler em voz alta o máximo que se puder extrair dos oito capítulos do pequeno romance — o fluxo ininterrupto dos monólogos contraditórios de Getúlio, começando por um primeiro parágrafo de quase duas dezenas de páginas!

É difícil falar de uma obra como essa sem parecer omisso ou necessariamente desnecessário. Pois seu vigor não está em nada posterior a ela, como análises e críticas, mas em suas páginas e na construção brilhante que João Ubaldo Ribeiro desenvolve a partir da insistência, do esforço e da paciência. Até que tudo parece fazer sentido, mesmo que não o tenha (e é preciso?). As formas quebradas, os engasgos, as interrupções, os caminhos tortuosos levam, afinal, à verdade. A verdade do romance, da vida. (É difícil não querer fazer poesia após ler um tal poema em prosa).

O livro teve grande e merecida repercussão, com entusiasmados elogios de Erico Verissimo, Jorge Amado, Fernando Sabino, prêmios e mais prêmios, comparações a Guimarães Rosa e a Graciliano Ramos e traduções em várias línguas (sendo a tradução em inglês feita pelo próprio autor). Houve edições sucessivas (a minha é a décima, de 1989) e até uma adaptação para o cinema, com roteiro co-escrito pelo romancista, que posto a seguir, junto a uma de suas entrevistas mais recentes (Sargento Getúlio é referenciado em vários momentos). Mas de que tudo isso se não para o livro? É ele que interessa, e espera-se que Getúlio, com sua verborragia, com seus causos e sua macheza, seu orgulho e seus princípios, seus arroubos e paixões, ainda faça muitas viagens em sua curta mas eterna jornada literária.