sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Backgrounds da Disney

Os longas animados da Disney são conhecidos sobretudo por sua famosa "character animation", ou animação de personagem, arte levada ao refinamento por gente como os Nine Old Men (gente como Milt Kahl, Frank Thomas, Ollie Johnston e Ward Kimball) e também por artistas mais recentes como Glen Keane, Eric Goldberg e Andreas Deja, que consolidaram a animação disneyana e a consagraram e tornaram referência há várias décadas.

Mas nem só de personagens vive um filme de animação. Existe muita coisa ali, meticulosos e perpétuos trabalhos técnicos, da colorização à arte-final, dos "inbetweens" (os desenhos repetidos à exaustão, entre as cenas-chaves designadas pelo animador supervisor) aos efeitos "especiais" e ao processo de se selecionar o "tom" do filme, há muito o que se decidir, pensar no que utilizar, quais instrumentos usar, qual o tipo de visual para o conceito que se quer imprimir ao trabalho. Uma das principais etapas para dar a "cara" adequada ao filme são os backgrounds.

Trata-se simplesmente dos fundos de cena. Mas é ali que as personagens se movimentarão, é ali que se dará a encenação e o desenvolvimento do filme como uma narrativa amparada em uma estruturação de imagem e percepção. Sem os backgrounds, as personagens flutuariam num nada, sem a força plástica da ambientação, sem os recursos narrativos que isso comporta.

Provavelmente o filme mais ambicioso da Disney nesse aspecto foi A bela adormecida, lançado em 1959. Os fundos de Frank Armitage e (principalmente) Eyvind Earle foram cruciais para a amplidão um pouco "megalômana" (mas satisfeita) do projeto ao qual Walt Disney vislumbrou com um requinte e detalhamento inauditos, para exibição numa larguíssima tela widescreen nos cinemas — extensão enorme e de poderosa profundidade e poder de sugestiva imersão.

A seguir, alguns backgrounds (clicando nas imagens, elas aumentam) impressionantes de quatro clássicos do estúdio, bem diferentes entre si. Os títulos dos filmes são um link para os sites de onde retirei as imagens, e a visita a eles é recomendadíssima.

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Pinóquio (1940) - Claude Coats
Detalhada reconstrução de oficinas de brinquedo, ambientes de espetáculo, locais cheios de peças e objetos.



Bambi (1942) - W. Richard Anthony
Ambientes abertos, escuros e calmos, com folhas, árvores e cores calmas, frias, exuberantes ou melancólicas.


A bela adormecida (1959) - Eyvind Earle
Requinte e detalhamento obsessivo, ornamentos de luxo, ambientes naturais cheios de tons e matizes e formas.



101 dálmatas (1961) - Walt Peregoy
Despojamento, cores fortes e "cartunescas", que vazam dos objetos/figuras, tons climáticos ou soturnos, modernidade.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Asterix, o gaulês

Asterix, um dos personagens mais célebres e populares dos quadrinhos mundiais, nasceu em 1959, nas páginas da icônica revista Pilote, pelas mãos do desenhista Albert Uderzo e o prolífico roteirista René Goscinny (que também escreveu os melhores momentos de Iznogoud e Lucky Luke). Nasceu sob muitas ideias, sobretudo duas: retomar satiricamente a identidade francesa, abrangendo histórias passadas na antiga Gália Celta, e derrubar alguns estereótipos clássicos dos quadrinhos históricos e de aventura, dando a luz do protagonismo a uma figura baixinha, feiosa, bigoduda e bastante ridícula em aparência.

Se nasce como uma espécie de paródia, Asterix aos poucos consegue libertar-se das limitações de concepção e cresce; não em tamanho, pois o diminuto guerreiro gaulês sempre foi e será baixíssimo de altura. Mas cresce em qualidade, em experimentalismo, em ousadia, em brilhantismo. Aos poucos os textos geniais de Goscinny e os desenhos fluidos e engraçados de Uderzo conquistam seu espaço e vão arregimentando legiões (ironia) de fãs e admiradores, que fizeram dessa série de pouco mais de trinta álbuns (uma quantidade até pequena, se considerarmos as décadas de vida do quadrinho) um sucesso estrondoso e dificilmente igualado, que originou uma profusão incrível de jogos, filmes, animações e até mesmo um parque (!), localizado em Paris (a Lutécia da Roma antiga).

Estamos em 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos. Toda? Não! Todos sabemos da aldeia dos irredutíveis gauleses, que desafiam César e seu poderio e resistem hoje e sempre ao invasor. Magnífica experiência imaginativa, Asterix é um giro pelo mundo conhecido na Antiguidade: Roma e suas fronteiras, a Helvécia (Suíça), a Hispânia (Espanha/Portugal), a Bretanha (Inglaterra), a Normandia (Noruega), não há terra por onde os gauleses não tenham estado, e nem personalidade histórica com que não tenham deparado — além de César, comum encontrarmos Brutus, Pompeu, Cesário (Ptolomeu XVI), Cleópatra... E ainda o reforço de coadjuvantes bem pensados e dosados: comerciantes fenícios, artesãos gregos e egípcios, piratas e afins. Todo um mundo em Asterix.

Mas não é só por esses aspectos que Asterix é grande. É difícil falar de uma série como essa, pois cada elemento parece ter sido cuidadosamente desenvolvido para um efeito, geralmente com ótimos resultados. O humor, por exemplo, que torna hilária cada trama, que desenvolve cada caráter das personagens (variadas, delirantes, críveis), que transforma o cotidiano corriqueiro da pequena aldeia da Armórica em uma festa de graça, de espírito e de engenhosidade. Goscinny faz cada personagem e situação serem embutidos com a mais intensa percepção da sátira convincente e humana; Uderzo pincela habilmente as expressões, movimentos corporais e gestuais para que não tenhamos aquelas gentes e coisas como eventos de papel, mas como realizações cheias de dimensão e profundidade. Um casamento perfeito.

Casamento desfeito com a prematura morte de Goscinny em 1977, aos 51 anos de idade. De 1959 a 1977 os álbuns de Asterix floresceram como quintessência do mais alto grau do humor nos quadrinhos europeus (e de todo o planeta). Seus vinte e três álbuns e meio (faleceu no meio da produção de Asterix entre os belgas, o 24º livro da coleção) são um testemunho de vigoroso talento e extremada competência. Tudo que ele fez no período é digno da mais alta reverência. Meus particulares destaques vão para perfeições como A cizânia, Asterix entre os normandos, Obelix e companhia e O domínio dos deuses.

Com a morte de Goscinny, houve o medo da interrupção definitiva de Asterix. Numa decisão algo estranha, Uderzo resolve ir além dos desenhos e também roteirizar as aventuras de Asterix, seu grande (até literalmente) amigo Obelix e demais gauleses. O primeiro álbum nessas condições, após a finalização do inacabado por seu parceiro René, foi O grande fosso, seguido de seu melhor momento "solo": A odisseia de Asterix. Infelizmente, Uderzo revelou-se terrível roteirista, e, pior, continuísta sofrível: as histórias escritas por ele por vezes eram desconexas das talhadas por Goscinny, com erros de dados (como o aniversário de Asterix e Obelix, contrastante em Obelix e companhia, de 1976, e Asterix e Latraviata, vindo à luz em 2001), problemas de caracterização das personagens (o "poder especial" do bardo Chatotorix em As mil e uma horas de Asterix), ou até mesmo heresias contra o próprio espírito da série e as estruturas da saga toda, como no terrível A galera de Obelix, em que o personagem-título faz algo que não deveria nunca fazer, por proibição do druida Panoramix. O último álbum de Uderzo foi O dia em que o céu caiu, que fecharia de vez a coleção (a capa era uma espécie de reverso da capa do primeiro álbum, inclusive).

Inesperadamente, há relativamente pouco tempo, Uderzo mudou de ideia e resolveu passar a série adiante. Em 2013 houve a estreia mundial de Asterix entre os pictos, primeiro álbum de Asterix sem participação de Uderzo (que fez apenas o desenho de Obelix na capa). Jean-Yves Ferri assumiu os roteiros, desenhados doravante por Didier Conrad. O novo livro, feito um tanto apressadamente, não foi dos mais satisfatórios (apesar de não ser ruim como os piores da fase solo de Uderzo), mas ainda é cedo para falar do futuro da série. O que se pode falar é que Asterix continua fazendo um colossal sucesso (o novo álbum vendeu como água), e muita água virá para frente. Água ou poção mágica, com muita disposição para caçar javalis, destruir acampamentos romanos ou simplesmente divertir, entreter e encantar os leitores que há cinquenta e cinco anos acompanham entusiasmados os banquetes, viagens e inúmeras brigas dos habitantes da aldeia chefiada pelo "colérico" Abracurcix. Ave!

Nota 1: Clicando sobre as figuras, é possível vê-las em tamanho maior; atentar para a diversidade de personagens e o detalhamento de Uderzo.
Nota 2: Optei por escrever os nomes em português, com as traduções e sem acentos. Quem souber francês terá em Asterix farto material de riso, com tiradas como o bardo chamando-se Assurancetourix, transposição marota de uma publicidade de seguro de vida que "cobre todos os riscos".
Nota 3: Os nomes terminados em "ix", são claro, homenagem ao líder gaulês Vercingetórix, que depôs as armas aos pés de César (feito mostrado literalmente em O escudo arverno); romanos têm nomes terminados em "us", egípcios em "is" etc.
Nota 4: Há MUITO o que se dizer sobre Asterix, e claro que este texto é pálido rascunho do que já foi mais do que dissecado em comentários, estudos, críticas, teses, reportagens e inúmeras outras formas de análise. Como uma demonstração da amplidão da influência e do alcance e popularidade alcançados pela série, estão expostos a seguir a ótima abertura do primeiro filme live action, estrelado por Christian Clavier (Asterix) e Gérard Depardieu (Obelix), a íntegra do melhor longa de animação com os personagens de Goscinny e Uderzo (e o único com roteiro original), um dos vários documentários com entrevistas sobre os autores do quadrinho, um exemplo de game inspirado em Asterix e uma pequena conversa dos novos autores da série, Ferri e Conrad.