quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sargento Getúlio

Às vezes nos esquecemos que o Brasil é antes um continente que um país, e que em toda a sua extensão temos mil sotaques, aparências, culturas. Há grandes distâncias, grandes abismos. Um livro como Sargento Getúlio faz pensar também em outras distâncias além das geográficas, e ao mesmo tempo sua regionalíssima história nordestina é tremendamente universal: converge-se no romance de João Ubaldo Ribeiro o universalismo com o exclusivo de uma terra e época. Pouco mais de quarenta anos após sua publicação original, esse multidimensionalismo ainda é extremamente novo, original e ousado, por vezes chocante.

Pois em Sargento Getúlio a premissa simples (espécie de jagunço a serviço do coronelismo transporta um prisioneiro de um ponto a outro em Sergipe) como que se abre num despetalar de vozes e consciências que é mais impressionante porque quase unificado na figura-título, narradora da história. Diferente de todos os narradores em primeira pessoa, Getúlio solta seu fluxo de pensamento sem rigidez de estilo, parecendo por vezes uma carta de confissão, um delírio, uma confidência, um desabafo, um manifesto, uma ameaça (poderia continuar indefinidamente). Por meio de uma prosa atabalhoada, define-se o caráter, o histórico e os ideais (e as ações e compromissos) do sargento, de seus colegas e seus conhecidos — inclusive o do "coisa", o "traste", o transportado, a quem Getúlio despreza e chega a lhe deformar o rosto, numa cena de violência impactante (superada por outras). E a política, os desmandos, o jogo dos graúdos (e do "chefe" de Getúlio), o papel da imprensa? Tudo lá.

A violência é, aliás, uma das tônicas do relato. Um falar sujo, forte e definitivo, ainda que atropelado, desordenado e amórfico. Os adjetivos abundam, mas não é um romance de adjetivação. É uma experiência essencialmente sensorial, narrativa oral que em verdade não se parece com a transposição de diálogos mas como um encadeamento estilístico de ideias que só encontram sentido quando se apresentam literariamente. Mas é bom de imaginar os sons que surgem das linhas, e bom ler em voz alta o máximo que se puder extrair dos oito capítulos do pequeno romance — o fluxo ininterrupto dos monólogos contraditórios de Getúlio, começando por um primeiro parágrafo de quase duas dezenas de páginas!

É difícil falar de uma obra como essa sem parecer omisso ou necessariamente desnecessário. Pois seu vigor não está em nada posterior a ela, como análises e críticas, mas em suas páginas e na construção brilhante que João Ubaldo Ribeiro desenvolve a partir da insistência, do esforço e da paciência. Até que tudo parece fazer sentido, mesmo que não o tenha (e é preciso?). As formas quebradas, os engasgos, as interrupções, os caminhos tortuosos levam, afinal, à verdade. A verdade do romance, da vida. (É difícil não querer fazer poesia após ler um tal poema em prosa).

O livro teve grande e merecida repercussão, com entusiasmados elogios de Erico Verissimo, Jorge Amado, Fernando Sabino, prêmios e mais prêmios, comparações a Guimarães Rosa e a Graciliano Ramos e traduções em várias línguas (sendo a tradução em inglês feita pelo próprio autor). Houve edições sucessivas (a minha é a décima, de 1989) e até uma adaptação para o cinema, com roteiro co-escrito pelo romancista, que posto a seguir, junto a uma de suas entrevistas mais recentes (Sargento Getúlio é referenciado em vários momentos). Mas de que tudo isso se não para o livro? É ele que interessa, e espera-se que Getúlio, com sua verborragia, com seus causos e sua macheza, seu orgulho e seus princípios, seus arroubos e paixões, ainda faça muitas viagens em sua curta mas eterna jornada literária.

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