sexta-feira, 18 de maio de 2012

We have met the enemy and he is us

POGO é considerado um dos melhores quadrinhos já feitos, mas no Brasil é um título desconhecido. Ignoro se já foi publicado aqui em alguma revista obscura, um fanzine ou coisa parecida. Mas nunca saiu como devia, em um livro próprio, nunca foi muito comentado e nem é referenciado por quem seja.

A primeira vez que ouvi falar de Pogo foi quando, ainda pequeno, li pela primeira vez "Os dez anos de Calvin e Haroldo", de Bill Watterson. Pogo é citado por ele, ao lado dos também seminais Peanuts e Krazy Kat, como um dos quadrinhos que mais o influenciaram. Mas para mim era um personagem ainda distante, não havia sequer uma ilustração para acompanhar a elogiosa análise (suponho que por razões de copyright).

Durante anos, Walt Kelly, o autor de Pogo, foi um nome importante para mim, mas um nome invisível; eu, fã da Disney desde garoto, já havia visto inúmeros trabalhos de Kelly sem o saber! Kelly fez muitas coisas para a Disney, e só há poucos anos, quando a Editora Abril publicou a obra completa de Carl Barks, pude ver com insistência seu nome creditado — como capista, no caso; autor de dezenas de capas de Donald, por exemplo. Além delas, ilustrou histórias e também trabalhou como animador em alguns clássicos inesquecíveis: ele anima parte do fabuloso "Fantasia", no segmento da Sinfonia Pastoral, e um pouco de "Dumbo" também. O imprescindível site Inducks lista todos os trabalhos de Kelly com os quadrinhos Disney.

Kelly saiu da Disney em meados dos anos de 1940, quando foi um dos famosos "grevistas" que levaram Walt Disney à loucura ao paralisarem seus estúdios (episódio narrado por Álvaro de Moya em seu livro "O mundo de Disney"). Por essa época ele criou Pogo, que estrearia sua própria tira no final dessa década. Pogo é esse bichinho engraçadinho que abre este texto, espécie de gambá (seu nome completo é justamente Pogo POSSUM, um tipo de "gambá" em inglês) que vive com amigos — animais silvestres, como tartarugas, corujas, ursos e jacarés — em um pântano e é protagonista de aventuras e confusões cotidianamente.

Mas o que esse quadrinho tem de especial, afinal?

É mais fácil reformular a pergunta: o que Pogo NÃO tem de especial?


Pogo possui um traço lindíssimo, apaixonante, repleto de detalhes e ainda assim fluido, ágil. Talvez por ter trabalhado com desenhos animados, o trabalho de Kelly nunca é estático, robótico: Pogo é uma tira de movimento, que não cansa os olhos e que entusiasma pelo ritmo. Mas não apenas isso — Pogo é um quadrinho satírico e que possui grande carga política, ao mesmo tempo em que se "disfarça" de infantil, pelo traço e pelos personagens fofinhos. É uma abordagem bastante especial: as crianças gostam da tira pelo aspecto cartunesco e pelo absurdo das situações, e os mais velhos admiram a crítica social e a inconformidade libertária de Kelly ao brincar com coisas inusitadas como a geopolítica universal (líderes mundiais já deram as caras nas histórias da turminha do pântano, seja como eles mesmos ou ocultos sob "inocentes" paródias).

Ao longo das décadas da série, Pogo, mesmo sendo uma leitura relativamente "difícil" e muito autoral, foi angariando crescente popularidade, chegando a ganhar produtos dos mais variados (bonecos, bottons, desenhos animados e inclusive discos, com o próprio Walt Kelly cantando!), merecendo até mesmo estudos psicanalíticos! Houve também citações como a do colega e amigo Al Capp (criador do clássico Li'l Abner, ou Ferdinando).



A influência de Pogo é enorme. Gente como Robert Crumb o aponta como obra-prima, Goscinny e Uderzo (os autores de Asterix) adotaram várias irreverências visuais vindas da obra de Kelly — como balões em que os diálogos das personagens são escritos em fontes diferentes e muito particulares de uma ideia, visão ou procedência de quem fala — e hoje ele figura em onze de cada dez listas dos maiores quadrinhos de todos os tempos. E enquanto aqui no Brasil ele segue anônimo, a Fantagraphics está em vias de lançar o segundo volume com todas as tiras reunidas, completadas por estudos, críticas, curiosidades e mil anexos.

O melhor texto que já vi sobre Pogo é também uma das melhores análises/críticas que já vi sobre um quadrinho, e foi feita pelo homem que me apresentou ao maravilhoso mundo de Walt Kelly: Bill Watterson. O texto se encontra na íntegra aqui, e é altamente recomendável.

Apesar de tudo, não tenho muita certeza se Pogo faria boa carreira em terras brasileiras, e a razão é muito simples: o idioma. O texto de Kelly, traduzido, perderia mil significados e significantes, pois se aproveita da força da expressão coloquial, de dialetos, de trocadilhos e elipses de linguagem, material essencialmente intraduzível. De qualquer modo, é necessário que os brasileiros conheçam Pogo e tenham uma ideia do que é possível fazer em tiras de jornal, veículo hoje sucateado pela profusão de artistas irrisórios.

Enquanto isso não é possível, o blog Whirled of Kelly é uma ótima fonte para quadrinhos e ilustrações incríveis de Pogo e todo o pessoal do pântano Okefenokee.

Atualização (19/05/12): Os amigos Pedro Bouça e Ben Santana me mostraram outra marca do alcance de Pogo, com esta homenagem feita por Alan Moore em seu Monstro do Pântano.

Atualização 2 (19/05/12): Como me esqueci de mostrar esta animação, dirigida por Chuck Jones? De qualquer modo, Walt Kelly não ficou satisfeito com o resultado:



Atualização 3 (20/05/12): Nikki Nixon avisou que Pogo saiu sim no Brasil! Foi na revista Patota, nos anos 1970.

10 comentários:

André Portocarrero disse...

Mais que um belo começo. Vc é fera! Já ganhou um seguidor. Também já ou vi falar do POGO...citações em textos...nesse mesmo do B.W. Assim como vc, acabei de me interessar por este ainda obscuro (aqui no Brasil) personagem e pelas suas mãos! Parabéns!!!

Filipe Chamy disse...

Obrigadão pelo apoio e pelo incentivo! E mais que isso, fico muito satisfeito que tenha te despertado o interesse para o Pogo! Esse era o objetivo deste post inicial: apresentar esse magnífico quadrinho a quem não o conhecia muito bem! :)

Fernando Ventura disse...

Quem era um grande fã do Pogo era o Igayara. Ele me emprestou alguns livrinhos da série, na época em que eu estudava na sua escola. Mesmo que o texto seja "incompreensivo" a arte é do Walt Kelly era genial!

Filipe Chamy disse...

Sim, belíssima! Por esse aspecto do desenho, tem tudo pra dar certo aqui. O Kelly desenhava bem como poucos. Fora que o Pogo é um personagem super propício ao merchandising, haha. Eu queria um boneco dele!

cid disse...

bela matéria,parabéns pelo novo blog.

Filipe Chamy disse...

Obrigado!

Juliana Maués disse...

Comecei a ler as tiras ontem no blog "Whirled of Kelly" e o traço é realmente fantástico, de uma agilidade impressionante, sem ser descuidado. E o texto, para além do significado, também tem uma fluência sonora toda especial. Já virei fã!
(Visitar aqui sempre me rende descobertas, no mínimo, interessantes).

Filipe Chamy disse...

Obrigado, Juliana, você é muito gentil! E Pogo é mesmo fabuloso, sob qualquer ponto de vista!

Juliana Maués disse...

:) Sabes onde eu posso encontrar pra ler de um modo mais "direto" do que no blog? - que não seja nas compilações impressas porque eu já pesquisei e, infelizmente, não tenho como comprar agora... Consegui achar um arquivo com tiras de domingo, mas nada com as diárias.

Filipe Chamy disse...

Infelizmente não sei, Juliana. Só caçando mesmo pela internet. As tiras de Pogo (tanto as diárias quanto as dominicais) sempre foram publicadas muito atabalhoadamente, apenas recentemente a Fantagraphics está pondo ordem na bagunça toda e finalmente publicando tudo como se deve... O resto está perdido pelos sites e pelos sites mundo afora, mas tudo meio misturado e incompleto.