
Então virei-me de vez para os patos e para os ratos. Além de um material extremamente mais abundante — afinal, as histórias do Zé são quase todas brasileiras, enquanto que os outros personagens são produzidos por vários países —, Donald, Patinhas, Mickey, Pateta e companhia nunca correram o risco de esgotarem suas tramas novas e engessarem suas revistas com repetições infindáveis e desesperadoras (como ocorreu com o Zé na triste última década).
A razão para o Zé sofrer nessa negligente situação é um amálgama de várias infelicidades simultâneas, que fizeram os quadrinhos Disney brasileiros passarem por reformulações iminentes visando a revertar sua estagnação e virtual cancelamento; as revistas acabaram sendo preservadas, com um acréscimo expressivo nas vendas dos últimos anos, mas encerrou-se de vez a produção artística de histórias feitas aqui. Até que ultimamente surgiu uma esperança.

Afinal, quem é o Zé Carioca? O papagaio verde foi criado pela equipe de Walt Disney em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, com os planos de aproximação dos ianques desejosos de expandir sua política da boa vizinhança e com isso aumentar seus mercados (a Europa, lembremos, estava bloqueada por Hitler e demais forças anti-EUA). Zé surgiu já em grande estilo, no clássico (animated feature, ou longa animado) Alô, amigos, dançando a "Aquarela do Brasil" com o Pato Donald, ensinando o desajeitado pato a sambar, ciceroneando-o pelo Rio. Zé fez tanto sucesso que apareceu em mais dois (!) clássicos do estúdio, Você já foi à Bahia? (onde forma um inesquecível trio com os caballeros Donald e Panchito) e Tempo de melodia. Para se ter uma ideia do que o Zé representa na história da animação Disney, ele aparece em tantos longas do cânone oficial disneyano quanto... Mickey Mouse! Com um detalhe: Mickey só emplacou seu terceiro clássico em 2000, com o segundo Fantasia, enquanto Zé já na década de sua criação saía na frente com suas três participações.

Alguns veem em Zé Carioca um estereótipo pejorativo do brasileiro, por sua folga, sua preguiça, sua vadiagem, sua manha, sua fissura com samba, futebol e feijoada. Mas personagem menos ofensivo não há: criatura simpática, inteligente e "gente boa" está aí. Quanto aos traços negativos que apresenta, ora, nunca se pretendeu afirmar que todos os brasileiros são assim: apenas o Zé é que é! Podemos ver nos dois volumes comemorativos de suas sete décadas, lançados pela Abril em outubro e novembro, uma grande variedade de traços de seu caráter, e quem o acusa por um ou dois deles só demonstra o evidente: não conhece a carreira do Zé em longas décadas de aperfeiçoamento.
A relação do Zé com a Abril é muito importante, pois foi sob o selo (e a infraestrutura) dessa casa que todas as histórias brasileiras do Zé (que são a grossa maioria do que se fez com o papagaio) foram desenvolvidas e lançadas. Então não foi difícil para eles selecionarem alguns momentos-chave na vida do penoso, como o surgimento de seu alter-ego de herói (Morcego Verde, abertamente inspirado no Morcego Vermelho do Peninha, também criação brasileira), suas fugas da Anacozeca (Associação Nacional dos Cobradores do Zé Carioca), sua relação com a namorada (Rosinha, periquita milionária filha do tucano Rocha Vaz), com os amigos (sobretudo o urubu Nestor, o pato Afonsinho e o sui generis [provavelmente um cachorro] Pedrão Feijoada), com os sobrinhos (Zico e Zeca, sendo este também um herói alternativo: o Paladino Implacável), os primos (Zé Paulista, Zé Queijinho, Zé Jandaia, Zé Baiano...), suas aventuras com os compañeros Donald e Panchito... Sobre esse trio, os volumes estão mesmo preciosos: há uma trama inédita italiana, uma releitura de Você já foi à Bahia? feita por ninguém menos que Walt Kelly e as duas aventuras (no maior sentido do termo) que Keno Don Rosa fez com os três amigos; sim, até mesmo o mítico Don Rosa, para quem apenas Carl Barks fez quadrinhos Disney dignos de atenção, rendeu-se ao papagaio e prestou seu tributo (ainda que ignorando a "cronologia" brasileira e seguindo o molde do Zé americano dos primórdios). Zé Carioca mostrou-se um brasileiro dos mais universais! Para quem quiser conferir a seleção de histórias, prévias e comentários dos leitores, basta conferir no fórum Calisota os tópicos do primeiro e do segundo volumes.
Como já dito, após uma década obscura, Zé Carioca aos poucos tem reaparecido sob holofotes: os dois especiais estão sendo bem acolhidos na rede e nas bancas; de Ruy Castro a comentadores anônimos, muitos deram os parabéns por seu jubileu de vinho; e, mais importante que tudo, no segundo volume do especial já temos um aperitivo do renascimento de Zé nos quadrinhos brasileiros, com duas histórias completamente inéditas — a produção retoma em poucos meses, segundo anunciado. Eu e o colega Thiago Machuca, do Portallos, aproveitamos a ocasião para uma rápida entrevista (ou antes um bate-papo) com Fernando Ventura, um dos principais responsáveis pela nova sobrevida do personagem e grande pesquisador de artes Disney (colaborando ele mesmo com a colorização, desenho e roteiro de muitas histórias). Fernando sintetizou e atualizou a conversa e mandou-me ainda uma exclusiva página de um roteiro seu para uma história ainda inédita. Esperamos com isso prestar nossas homenagens a esse grande personagem Disney que é Zé Carioca, e também incentivar um pouco o necessário reconhecimento da importância desses incríveis 70 anos — além de torcer para que a nova produção brasileira chegue com força e nunca mais seja interrompida!
ENTREVISTA COM FERNANDO VENTURA
SOBRE O RETORNO DA PRODUÇÃO
Filipe: A retomada da produção brasileira de Zé Carioca coincidiu com os 70 anos do papagaio. A Abril apressou ou atrasou essa produção para lançá-la na data comemorativa? Os artistas envolvidos receberam algum comando específico ou a volta do Zé já estava sendo planejada independentemente de qualquer aniversário?

SOBRE AS TIRAS AMERICANAS DA DÉCADA DE 1940
Fernando: Paulo Maffia [o editor dos quadrinhos Disney no Brasil] me ligou e disse "veja se você consegue algum material raro para publicar no especial"! O que poderia ser mais raro do que as páginas dominicais do Zé Carioca? Foi preciso três coleções, localizadas em três países diferentes, para que todas as 104 páginas pudessem ser republicadas. Foram 6 meses de produção, desde a escolha das melhores matrizes até o letreiramento e revisão. Meu papel foi traduzir, colorir e supervisionar a restauração ou arte-final das tiras que não existiam em matrizes preto & branco. Essa etapa foi feita pelo David Gerstein, Shelley Plegger e José Wilson Magalhães. Quanto às cores, fiéis ao original, essa era uma linha que eu já vinha desenvolvendo desde a publicação de "As Obras Completas de Carl Barks". Foi somente durante a tradução que percebi que não apenas as últimas 5 gags eram inéditas nas publicações da Abril, mas que várias outras páginas haviam sido puladas, editadas, ou mesmo censuradas, nas publicações anteriores.

Filipe: O "esforço de exportação" comporta fazer histórias menos 'regionais' ou seria tornar a brasilidade do Zé tão divertida e especial que não se veria problemas em mandá-la para outros países assim como a fazemos aqui, sem alternar nada substancialmente?
Thiago: Por que a obsessão por bonés? Nota-se um uso perturbador deles nos anos 90, mas isso não se reflete tanto assim nos dias de hoje. E tanto na HQ da torneira quanto na das plantas [as duas inéditas do segundo volume do especial], ali estão os personagens com bonés. Fala-se em variedade, mas é fogo ver um personagem como o Pedrão de boné em sua nova HQ, e ainda um boné cor de rosa! Deveriam ter um cuidado maior a esses detalhes, até mesmo nas cores. Sacanagem colocar um boné cor de rosa no Pedrão... Existem outros tipos de chapéus, sabe? O chapéu Panamá ficaria perfeito no Zé e é algo tanto nostálgico como moderno nesta geração.
Fernando: Enquanto eu trabalhava nas tiras, lembrei aos editores sobre as minhas HQs engavetadas. Por que não aproveitá-las? Deste modo pude me concentrar em terminar, com o cuidado necessário, a tradução e colorização dos tablóides. Foram tomados vários cuidados, como a produção de uma guia nova de roteiros (feita a meu pedido pela Cecília Magalhães, que trabalhou comigo em Gemini 8), novas técnicas de escaneamento e colorização em formato americano. Deste modo as HQs podem ser republicadas em formato maior e exportadas. Quanto ao "boné cor-de-rosa" do Pedrão, na HQ das "plantas", era pra fazer contraste com as outras cores! E não é rosa, é magenta! Ah, ah, ah!
[Nota: Confira a cor do boné aqui.]
SOBRE O VISUAL DA TURMA
Filipe: Esta semana [esta entrevista tem alguns meses] terminei a leitura dos dois romances que inspiraram o filme "O caldeirão mágico", escritos por Lloyd Alexander, e assisti ao longa novamente, só o havia visto na infância. Esse filme teve um problema incrível desde a concepção até o lançamento, que foi basicamente o seguinte: o material foi considerado muito "dark" (impróprio para crianças) e o Katzenberger, então chefe da Disney, mandou cortar muitos minutos dele após reações negativas de uma plateia teste... A mutilação resultou num filme esquisito, incoerente e problemático, que deu um enorme prejuízo ao estúdio. O que eu queria com todo esse rodeio é perguntar algo simples: isso pode acontecer com os quadrinhos? De repente algum personagem, estilo, autor ou tendência é testado e violentamente rejeitado, a Abril ou mesmo a Disney pode interferir no aspecto artístico, de criação dessas obras? Nós lembramos do que houve com o Canini [artista brasileiro demitido pela Disney americana ao fazer um Zé Carioca "favelado" e com um traço diferente e autoral], mas e como funciona hoje? A Disney parece totalmente desinteressada pelos quadrinhos, ainda mais brasileiros; essa impressão é falsa ou aqui se tem liberdade de ação com os personagens disneyanos? Vocês devem seguir alguma "cartilha" vinda da matriz americana, com características imutáveis das condições físicas, psicológicas etc. das personagens?

Thiago: A cartilha da Disney diz quantos anos o Zé, Nestor, Pedrão e companhia devem ter? Personagens como o Donald ou Mickey passam a ideia de que já são adultos, mas às vezes, com esse Zé Carioca molecão, de boné e tênis, a impressão que tenho é a de que o personagem seria bem mais jovem. Esse visual dos anos 90, chamado de "Sérgio Malandro" por alguns, é um dos que mais se torcia para não retornarem, e foi ele que voltou. E agora? Vai ficar assim mesmo ou o Zé vai mudar para algo novo após as primeiras historias inéditas?
Fernando: Como já foi divulgado, foi dado aos artistas a liberdade para trabalhar com o visual dos personagens que preferir e que for melhor conveniente ao roteiro. Eu considero essa decisão muito acertada, pois permite aos roteiristas e desenhistas lidar com a questão de forma criativa. Em tempo, é preciso desmistificar a impressão de alguns leitores de que o Zé de boné e tênis "não deu certo". Como diria o Hércules, "tinha até bonequinho!"!. A iniciativa da Redibra, então representante Disney no Brasil, não foi imposta para a editora. Pelo contrário: foi aceita de bom grado pelos editores da época porque eles sabiam que isso renovaria o personagem, tanto que a presença do Zé Carioca, em licenciamento, exportação e mídias diversas, foi muito mais significativa nesse período do que na década passada. Outro ponto confuso é que as histórias do ano 2000 representam "o fim do estúdio nacional". Na realidade o estúdio já havia sido desmantelado em 1997. Foi justamente o lançamento dos gibis de R$ 1,00, em 1999, que permitiram à Abril voltar a produzir, ainda que por pouco tempo, novas HQs do Zé, Patos e Mickey, agora com artistas freelancers e estúdios terceirizados.
SOBRE O FUTURO
Thiago: A produção do Zé vai voltar apenas com HQs curtas? Alguma chance de vermos histórias maiores com o personagem? Especiais e paródias como era tão comum nos anos 90 (o gibi dos Trapalhões era craque nisso)?
Filipe: Só o Zé dará as caras na retomada da produção nacional? Como se darão as etapas desse ressurgimento? Como ficará a mensal do Zé e haverá a entrada de novos artistas nesta fase eufórica de renascimento?
Fernando: Eu acredito que com o aumento de vendas tudo pode acontecer, como mais histórias inéditas brasileiras de outros personagens e mini-séries. Eu adoraria bolar novas HQs da Turma da Pata Lee, por exemplo. Com continuidade tudo pode acontecer!