Em março de 2010, fiz um extenso texto sobre um dos meus grandes amores em cinema: Sandrine Bonnaire. Eu a conheci pessoalmente em 2011, e ensaiei entregar o texto a ela. Não gosto de tudo que nele há, mas, como essa é uma das "edições perdidas" da Zingu!, que sabe-se lá se poderão voltar ao ar algum dia, colo aqui todo esse panegírico a uma das grandes figuras femininas do cinema das últimas três décadas (desatualizado, pois ela fez mais alguns trabalhos depois — inclusive dirigiu mais um longa):
Um
dos sorrisos mais bonitos do mundo pertence a Sandrine Bonnaire, atriz francesa
por vocação e destino, uma das presenças mais fascinantes do cinema nos últimos
anos. Sandrine nasceu em fins de maio de 1967 e desde sua primeira aparição no
cinema, como protagonista já em 1983, abraçou cada filme como uma mãe abraça
seu filho pequeno. Este texto é uma pequena carta de admiração a uma atriz
admirável, traçando breves considerações sobre seus trabalhos mais importantes,
década a década.
Anos 80
Ocorre
que o cinema não costuma entender ou aceitar atores jovens, portanto Sandrine acaba
fazendo alguns filmes que não a valorizam: Tir
à vue e Le meilleur de la vie são
exemplos de produções que apostam apenas no superficial — a nudez do belo corpo
juvenil de Sandrine Bonnaire —, o que talvez explique o pudor de Sandrine nos
anos seguintes, onde quase não se expõe fisicamente em filme algum, sob nenhum
pretexto. A menina — ela tem por volta de dezesseis anos nessa época — parece
então despontar de vez e recebe convites irrecusáveis, de grandes diretores:
assim, em poucos anos trabalha com Agnès Varda — para quem faz a inesquecível
composição da protagonista de Os renegados,
moça pária em uma descompassada sociedade contemporânea —, com Jacques Doillon (em
A puritana, ao lado de Sabine Azéma e
Michel Piccoli), com André Téchiné (em Os
inocentes, junto a Jean-Claude Brialy, figura tarimbada nos filmes
nouvellevaguistas), com Claude Sautet (em Quelques
jours avec moi, formando um charmoso casal com Daniel Auteuil e dividindo a
cena também com Danielle Darrieux e Jean-Pierre Marielle), e novamente com seu
padrinho Maurice Pialat, em dois filmes junto a Gérard Depardieu; em Polícia ela tem presença curta e
marcante, mas em Sob o sol de Satã o
espetáculo é quase todo dela: sua Mouchette é um grande momento dramático e
certamente sua desenvoltura segura e honesta foi um dos trunfos que fez esse
polêmico filme questionador da fé realizado por Pialat sagrar-se vencedor da
Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Década
prolífica para Sandrine Bonnaire, iniciada com La captive du désert. Trata-se da história (real) de uma francesa
que ficou refém de uma tribo africana por meses e meses. O filme não introduz
nada, não há diálogos muito aprofundados, os silêncios, olhares e as extensas
repetições dão conta do marasmo a ser retratado e alcançado. Dirigido pelo
famoso fotógrafo Raymond Depardon, se assemelha a um documentário da National
Geographic, filmado à distância com uma câmera de longo alcance. A sensação de
"verdade" da obra é enorme, inacreditável; se o espectador não
conhecer Sandrine Bonnaire, se for o primeiro filme que vir com ela,
provavelmente terá plena certeza que vê um documentário. Mesmo porque o restante
de elenco é tribal de fato, e o filme é consideravelmente voyeurístico, bem
pouco aproximado, iniciando-se já com a situação montada — sem sequer mostrar o
que houve para a mulher ser capturada.
A
década ainda traz a Sandrine um reencontro, com uma de suas figuras
“descobridoras”, Agnès Varda: Sandrine faz uma participação afetiva em As cento e uma noites, relembrando
personagens anteriores, principalmente a moça desajustada de Os renegados — o filme que rendeu o
Leão de Ouro a Varda dez anos antes, criação emblemática para Sandrine e uma de
suas principais marcas de maturidade como atriz. Esse reencontro tem lugar
portanto em 1995, e nele também Sandrine contracena novamente com Michel
Piccoli (com quem trabalhara na década anterior em La puritaine), o que aumenta o ar familiar da carinhosa homenagem
prestada por Varda a essa cada vez mais completa jovem atriz francesa.
Anos 2000
Mais
um período de intenso trabalho para Sandrine Bonnaire — interrompido em 2004
quando teve sua segunda filha, Adèle, com o roteirista Guillaume Laurant (seu
marido desde 2003). Os filmes em que atua nesta fase são caracterizados por
produções modestas, muitas vezes de cineastas neófitos e com elenco
desconhecido. O primeiro deles é Mademoiselle
(não confundir com o filme de mesmo nome dirigido em 1966 por Tony Richardson,
com Jeanne Moreau), história leve de um romance fugaz. Sandrine não fazia
muitas comédias no início de sua carreira, o que vem paulatinamente mudando. Mademoiselle não é um filme de humor,
mas um filme de amor, portanto tem
uma doçura que escapa a quem não entende esse sentimento. O filme seguinte, C’est la vie, tem um tom mais sombrio,
ainda que o filme seja bastante claro e alegre na superfície; trata-se de uma
esforçada Sandrine Bonnaire, desapegada e alegre, convivendo com a morte dos
outros, numa narrativa delicada e que ainda tem o grande ator e cantor Jacques
Dutronc co-protagonizando o filme com a francesa (e cantando com ela!).
Após
uma participação no Femme fatale de
Brian de Palma, Sandrine volta a trabalhar com outro “descobridor” seu: Patrice
Leconte. Em mais um belo trabalho autoral, Confidências
muito íntimas, considerável sucesso de público e crítica. No filme de
Leconte, os personagens se cruzam por acaso, e, dependentes emocionais, se
relacionam à distância, mesmo em pensamentos. Confidências tornou-se um dos mais celebrados (e conhecidos) filmes
com Sandrine Bonnaire fora da França, e é co-estrelado pelo ator rohmeriano
Fabrice Luchini.
Os
filmes seguintes não provocam muita repercussão e nem sequer foram lançados no
Brasil: Le cou de la girafe é uma
parceria interessante entre Sandrine e Claude Rich, personagens estremecidos
por desencontros provocados pela inocência infantil de uma pequena menina,
filha de Sandrine; L’équipier traz um
amor conturbado entre uma mulher casada e um homem misterioso numa comunidade
campesina situada numa região afastada e cujo único diferencial é um obscuro
farol; Je crois que je l’aime é outra
comédia romântica, açucarada na medida adequada para permitir a Sandrine interpretar
sua personagem com desenvoltura e segurança; em Demandez la permission aux enfants as crianças é que tomam o
controle de tudo, criando situações embaraçosas e forçando seus pais a
intervirem de maneira curiosa e engraçada; Un
coeur simple é uma adaptação do conto homônimo de Gustave Flaubert, com
Sandrine fazendo o papel da servil Félicité, tão embrutecida quanto na história
original e com uma nobreza tão pouco compreendida quanto; L’empreinte de l’ange mostra a agonia de uma mãe com uma estranha
se aproximando da filha (mas talvez os papéis não sejam exatamente esses); Joueuse traz Kevin Kline em seu primeiro
papel francófono e contracenando com Sandrine Bonnaire em seu último filme até
a data, neste trabalho em que os protagonistas fazem do xadrez e da cultura uma
maneira de se conhecerem e respeitarem.
Curiosamente,
o trabalho mais importante da década para Sandrine, por razões profissionais e
pessoais, não foi um filme em que atuou como atriz, mas um documentário
dirigido por ela mesma: Ela se chama
Sabine é um delicado retrato de sua irmã (a moça do título), jovem autista
que teve sua situação física e mental agravada pela ignorância, negligência e
imperícia do atendimento médico a que foi submetida. Por um lado é uma história
alegre, porque mostra o amor de Sandrine por sua irmã, cenas da família reunida
e feliz, décadas atrás; mas também é triste, quando mostra a degradação
acentuada de Sabine e seu estado beirando a total inconsciência mental em
certos momentos. Aos interessados em ver este doloroso filme-tributo, existe na
rede virtual, em programas de compartilhamento, uma versão que traz de bônus um
programa de televisão em que Sandrine foi convidada a comentar o filme e
debater o assunto do autismo com especialistas da área médica, o que faz com
veemência e sinceridade. Sandrine, por sinal, tem respeitável histórico
ativista no assunto do autismo, chegando inclusive a se reunir oficialmente com
Nicolas Sarkozy para discutir o tema.
Sandrine ganhou vários prêmios em sua carreira, sendo os mais importantes o César (duas vezes: como revelação por Aos nossos amores e como atriz por Os renegados) e o troféu de melhor atriz em Veneza (por Mulheres diabólicas, honraria dividida com Isabelle Huppert pelo mesmo filme). Também foi indicada e premiada outras inúmeras vezes. Porém o mais importante para ela não é colecionar estátuas ou placas, mas alcançar com suas atuações diferentes níveis de expressividade, de sensibilidade, de comunicação. Sandrine Bonnaire é uma atriz apaixonante porque é uma mulher apaixonante.
Bônus: alguns vídeos com momentos marcantes de Sandrine Bonnaire.
Sandrine ganhou vários prêmios em sua carreira, sendo os mais importantes o César (duas vezes: como revelação por Aos nossos amores e como atriz por Os renegados) e o troféu de melhor atriz em Veneza (por Mulheres diabólicas, honraria dividida com Isabelle Huppert pelo mesmo filme). Também foi indicada e premiada outras inúmeras vezes. Porém o mais importante para ela não é colecionar estátuas ou placas, mas alcançar com suas atuações diferentes níveis de expressividade, de sensibilidade, de comunicação. Sandrine Bonnaire é uma atriz apaixonante porque é uma mulher apaixonante.
Bônus: alguns vídeos com momentos marcantes de Sandrine Bonnaire.
12 comentários:
Excelente texto, como sempre. Linda moça.
Linda, né? :)
Agradeço o elogio, mas acho um texto pouco enxuto e objetivo. Hoje eu faria algo mais na linha do que fiz depois, para a Natalie Wood.
Coloquei, em homenagem ao dia de hoje, mais uma foto dela - totalizando 13! :)
Conheci Sandrine em 2011 também, mas fiquei sem os autógrafos, garanti só uma foto.
Como fã, curti o texto pelo sabor de retrospectiva, relembrar (quase) tudo que ela já fez...
Queria ler o da Natalie Wood, posta aí!
Tenho duas fotos com a Sandrine! Que bom que você também conseguiu, onde foi? Aqui em São Paulo (Cinesesc) acho que só eu fui pedir foto e autógrafo para ela.
Quanto à Natalie, essa parte do texto é um link; clique nele e veja o texto em uma nova aba!
Consegui no Rio, no Instituto Moreira Salles. Fui uma das últimas pessoas a abordá-la, cerca de cinco foram falar com ela. Teve um rapaz que também levou um Criterion de "À Nos Amours" pra ela autografar (cheguei a pensar que era esse aí).
Meu antivírus estava bloqueando o link da Natalie (?!), mas finalmente consegui ler! Realmente, está bem mais enxuto e igualmente prazeroso. Só discordo em um ponto: para mim sua beleza encontra o auge em "Esta Mulher é Proibida" :)
Na verdade dois: mesmo mudando de tom no meio, admiro a tentativa de ousadia de "Love with the proper stranger" (me recuso a repetir o medonho título nacional).
Opa, agradeço o "prazeroso". O que não se pode dizer do título brasileiro desse filme do Mulligan, a despeito de nele também haver 'prazer'.
Eu gosto MUITO dos 2/3 iniciais desse filme. O terço final não me desagrada, mas acho deslocado, caberia melhor em outro filme, com outro tom.
O texto da Natalie também está melhor porque mais recente (escrevi ano passado). Acho que cada vez vou me aperfeiçoando mais, as coisas que escrevo neste blog me agradam muito mais do que as que produzi anteriormente, por exemplo. :)
Quanto a Sandrine no Rio, uma amiga minha foi (sem nada para ela assinar; eu que peguei com a Sandrine um autógrafo de presente para ela, tamanha a disponibilidade da moça!), e disse que ela foi pouco requisitada. Mas bom saber que o meu não foi o único DVD que ela assinou no Brasil! Quando ela veio aqui, nenhum filme com ela estava disponível em DVD no país... Pouco depois saiu o "Sans toit ni loi" (Os renegados/Sem teto nem lei), mas bobearam feio no atraso.
É realmente uma pena que os filmes com ela quase nunca chegam por aqui - seja em dvd, seja no cinema. Ainda bem que existe a internet!
Queria muito também ler sua autobiografia...
Parece-me que são entrevistas, não? Queria MUITO ler esse livro, mas infelizmente não é fácil encontrá-lo, ainda mais por um bom preço. Nem no Bookdepository tem...
É, na verdade ela "conversa" com dois jornalistas.
Não é auto nem é biografia? hahaha O livro, então. Nos sites que vi está caríssimo, sem contar o frete...
Pelas críticas e trechos parece ser muito bom.
Acredito que teve uma tiragem muito limitada, nem no Amazon tem mais.
Coincidência curiosa: hoje vi "Os amantes da Pont-Neuf" no cinema, e nos agradecimentos... SANDRINE BONNAIRE!
:O
Que curioso!
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