Asterix, um dos personagens mais célebres e populares dos quadrinhos mundiais, nasceu em 1959, nas páginas da icônica revista
Pilote, pelas mãos do desenhista Albert Uderzo e o prolífico roteirista René Goscinny (que também escreveu os melhores momentos de
Iznogoud e
Lucky Luke). Nasceu sob muitas ideias, sobretudo duas: retomar satiricamente a identidade francesa, abrangendo histórias passadas na antiga Gália Celta, e derrubar alguns estereótipos clássicos dos quadrinhos históricos e de aventura, dando a luz do protagonismo a uma figura baixinha, feiosa, bigoduda e bastante ridícula em aparência.
Se nasce como uma espécie de paródia,
Asterix aos poucos consegue libertar-se das limitações de concepção e cresce; não em tamanho, pois o diminuto guerreiro gaulês sempre foi e será baixíssimo de altura. Mas cresce em qualidade, em experimentalismo, em ousadia, em brilhantismo. Aos poucos os textos geniais de Goscinny e os desenhos fluidos e engraçados de Uderzo conquistam seu espaço e vão arregimentando legiões (ironia) de fãs e admiradores, que fizeram dessa série de pouco mais de trinta álbuns (uma quantidade até pequena, se considerarmos as décadas de vida do quadrinho) um sucesso estrondoso e dificilmente igualado, que originou uma profusão incrível de jogos, filmes, animações e até mesmo um parque (!), localizado em Paris (a Lutécia da Roma antiga).

Estamos em 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos. Toda? Não! Todos sabemos da aldeia dos irredutíveis gauleses, que desafiam César e seu poderio e resistem hoje e sempre ao invasor. Magnífica experiência imaginativa, Asterix é um giro pelo mundo conhecido na Antiguidade: Roma e suas fronteiras, a Helvécia (Suíça), a Hispânia (Espanha/Portugal), a Bretanha (Inglaterra), a Normandia (Noruega), não há terra por onde os gauleses não tenham estado, e nem personalidade histórica com que não tenham deparado — além de César, comum encontrarmos Brutus, Pompeu, Cesário (Ptolomeu XVI), Cleópatra... E ainda o reforço de coadjuvantes bem pensados e dosados: comerciantes fenícios, artesãos gregos e egípcios, piratas e afins. Todo um mundo em
Asterix.
Mas não é só por esses aspectos que
Asterix é grande. É difícil falar de uma série como essa, pois cada elemento parece ter sido cuidadosamente desenvolvido para um efeito, geralmente com ótimos resultados. O humor, por exemplo, que torna hilária cada trama, que desenvolve cada caráter das personagens (variadas, delirantes, críveis), que transforma o cotidiano corriqueiro da pequena aldeia da Armórica em uma festa de graça, de espírito e de engenhosidade. Goscinny faz cada personagem e situação serem embutidos com a mais intensa percepção da sátira convincente e humana; Uderzo pincela habilmente as expressões, movimentos corporais e gestuais para que não tenhamos aquelas gentes e coisas como eventos de papel, mas como realizações cheias de dimensão e profundidade. Um casamento perfeito.

Casamento desfeito com a prematura morte de Goscinny em 1977, aos 51 anos de idade. De 1959 a 1977 os álbuns de Asterix floresceram como quintessência do mais alto grau do humor nos quadrinhos europeus (e de todo o planeta). Seus vinte e três álbuns e meio (faleceu no meio da produção de
Asterix entre os belgas, o 24º livro da coleção) são um testemunho de vigoroso talento e extremada competência. Tudo que ele fez no período é digno da mais alta reverência. Meus particulares destaques vão para
perfeições como
A cizânia,
Asterix entre os normandos,
Obelix e companhia e
O domínio dos deuses.

Com a morte de Goscinny, houve o medo da interrupção definitiva de Asterix. Numa decisão algo estranha, Uderzo resolve ir além dos desenhos e também roteirizar as aventuras de Asterix, seu grande (até literalmente) amigo Obelix e demais gauleses. O primeiro álbum nessas condições, após a finalização do inacabado por seu parceiro René, foi
O grande fosso, seguido de seu melhor momento "solo":
A odisseia de Asterix. Infelizmente, Uderzo revelou-se terrível roteirista, e, pior, continuísta sofrível: as histórias escritas por ele por vezes eram desconexas das talhadas por Goscinny, com erros de dados (como o aniversário de Asterix e Obelix, contrastante em
Obelix e companhia, de 1976, e
Asterix e Latraviata, vindo à luz em 2001), problemas de caracterização das personagens (o "poder especial" do bardo Chatotorix em
As mil e uma horas de Asterix), ou até mesmo heresias contra o próprio espírito da série e as estruturas da saga toda, como no terrível
A galera de Obelix, em que o personagem-título faz algo que não deveria nunca fazer, por proibição do druida Panoramix. O último álbum de Uderzo foi
O dia em que o céu caiu, que fecharia de vez a coleção (a capa era uma espécie de reverso da capa do primeiro álbum, inclusive).
Inesperadamente, há relativamente pouco tempo, Uderzo mudou de ideia e resolveu passar a série adiante. Em 2013 houve a estreia mundial de
Asterix entre os pictos, primeiro álbum de Asterix sem participação de Uderzo (que fez apenas o desenho de Obelix na capa). Jean-Yves Ferri assumiu os roteiros, desenhados doravante por Didier Conrad. O novo livro, feito um tanto apressadamente, não foi dos mais satisfatórios (apesar de não ser ruim como os piores da fase solo de Uderzo), mas ainda é cedo para falar do futuro da série. O que se pode falar é que Asterix continua fazendo um colossal sucesso (o novo álbum vendeu como água), e muita água virá para frente. Água ou poção mágica, com muita disposição para caçar javalis, destruir acampamentos romanos ou simplesmente divertir, entreter e encantar os leitores que há cinquenta e cinco anos acompanham entusiasmados os banquetes, viagens e inúmeras brigas dos habitantes da aldeia chefiada pelo "colérico" Abracurcix. Ave!
Nota 1: Clicando sobre as figuras, é possível vê-las em tamanho maior; atentar para a diversidade de personagens e o detalhamento de Uderzo.
Nota 2: Optei por escrever os nomes em português, com as traduções e sem acentos. Quem souber francês terá em Asterix farto material de riso, com tiradas como o bardo chamando-se Assurancetourix, transposição marota de uma publicidade de seguro de vida que "cobre todos os riscos".
Nota 3: Os nomes terminados em "ix", são claro, homenagem ao líder gaulês Vercingetórix, que depôs as armas aos pés de César (feito mostrado literalmente em O escudo arverno
); romanos têm nomes terminados em "us", egípcios em "is" etc.
Nota 4: Há MUITO o que se dizer sobre Asterix
, e claro que este texto é pálido rascunho do que já foi mais do que dissecado em comentários, estudos, críticas, teses, reportagens e inúmeras outras formas de análise. Como uma demonstração da amplidão da influência e do alcance e popularidade alcançados pela série, estão expostos a seguir a ótima abertura do primeiro filme live action
, estrelado por Christian Clavier (Asterix) e Gérard Depardieu (Obelix), a íntegra do melhor longa de animação com os personagens de Goscinny e Uderzo (e o único com roteiro original), um dos vários documentários com entrevistas sobre os autores do quadrinho, um exemplo de game
inspirado em Asterix
e uma pequena conversa dos novos autores da série, Ferri e Conrad.