Cinema ainda é pouco valorizado artisticamente, pelo menos em comparação com as artes mais "nobres" música e literatura. Quadrinhos são ainda menos reconhecidos, com os últimos anos perdendo um pouco do preconceito em se debruçar sobre essa arte e seus aspectos. Mas há uma arte ainda MAIS subestimada que cinema e quadrinhos, e essa arte é a arte da animação.
É muito comum vermos animação relegada a rótulos como "desenho animado", "coisa pra criança" e "produto comercial", entre outras superficialidades, reduções e generalizações.
Quero neste blog, aos poucos, indicar alguns grandes animadores e seus trabalhos, contribuindo um pouco para acabar com esse estigma preconceituoso que ainda não foi revisionado. É um pequeno tributo a uma arte lamentavelmente ainda bastante marginalizada, mas de grande poder expressivo e grande invenção e criatividade. É preciso ajudar nesse esforço, ainda mais que a internet permite que todos vejam essas pequenas joias sem custo algum, com bom acervo e vasta acessibilidade.
Para começar, um mestre da República Tcheca: Jiří Trnka, considerado por alguns "o Walt Disney europeu". A meu ver, Disney era mais empresário que artista, portanto o velho Trnka (que morreu aos nada velhos cinquenta e sete anos, em 1969) está além desse elogio; no entanto, isso serve para mostrar como ele é popular em alguns círculos, e como ele é querido pelos espectadores de suas obras. Seus mais famosos filmes são curta-metragens estrelados por marionetes/bonecos (nos quais revela apurado senso de encenação), mas ele também se destacou em outros campos — como a ilustração de livros infantis, ganhando pelo trabalho um Hans Christian Andersen, a mais importante premiação mundial na literatura para crianças; a ilustração ao lado é dele, e o blog Animation Treasures tem outras.
A influência, o legado e até mesmo o estúdio de Trnka formaram praticamente uma escola de seguidores, entre os quais o também tcheco Jan Svankmajer, o mais internacional dos animadores daquelas bandas "afastadas" europeias (a ele voltarei em um post futuro).
Sem mais delongas, uma amostra do talento desse magnífico animador:
sábado, 30 de junho de 2012
terça-feira, 26 de junho de 2012
A turma do gordo
Há na nossa infância uma tendência a "reutilizar" muitas vezes as coisas que consumimos culturalmente: assistimos uma infinidade de vezes a nossos filmes favoritos, lemos repetidamente as mesmas revistas, coisas que hoje, com nosso cardápio de opções cada vez mais vasto e infindável, parecem bem distante do nosso pensamento. Uma das coisas que eu lia e relia e relia de novo quando era mais jovem eram os livros da turma do gordo, escritos por João Carlos Marinho.
A fórmula para os livros é em espírito bem simples: um punhado de crianças (com a idade parecida com a de seus leitores, uns dez, onze anos) vivendo aventuras e deparando-se com perigos e enrascadas. Sim, é uma ideia simples, em conceito; mas em execução a coisa é bem menos fácil do que dá a entender.
Eu vejo esses livros um pouco como seguindo as pegadas de Monteiro Lobato: histórias cujo único freio é o fim do livro, e até lá tudo pode acontecer, com muito humor e respeitando sempre o público leitor. Assim como as personagens lobatianas, os personagens da turma do gordo já viajaram pelo espaço, já encontraram entes sobrenaturais ou simplesmente vivem na gostosa modorra cotidiana que os espera em seu dia a dia de crianças.
Na verdade, essa aproximação é menos imaginada por mim que planejada pelo autor: João Carlos Marinho é grande apreciador da obra infantil de Monteiro Lobato, e inclusive pode-se encontrar em alguns livros teóricos/críticos sobre essas obras alguns comentários e análises que ele fez ao longo dos anos, debruçando-se sobre as pouco mais de vinte aventuras da turma do sítio de Dona Benta — vale consultar o excelente "Monteiro Lobato, livro a livro - Obra infantil", organizado por Lajolo e Ceccantini. É possível também encontrar em livros da turma do gordo várias referências às personagens e aventuras de Narizinho, Pedrinho, Emília e companhia. Dois exemplos: em um de seus livros uma personagem reclama por as criaturas lobatianas serem tão bem desenhadas nos livros, dando, na visão de Marinho, pouco espaço à imaginação construtiva dos leitores. Ele vai além nessa idiossincrasia e, por contrato, seus livros não podem ter NINGUÉM da turma desenhado; as ilustrações das obras são abstratas, colagens e afins, e ao leitor é negado o rosto gráfico de personagem que seja. É uma decisão bonita, algo anacrônica, bastante romântica. Isso já demonstra o quanto ele se importa com seu público, o que ele, como autor, espera de seus leitores. João Carlos Marinho não deseja leitores passivos.
O segundo exemplo que mencionei é extraído de seu mais recente livro do gordo (e, presumivelmente, o último, segundo ele declarou em entrevistas e palestras), "Assassinato na literatura infantil": o troféu concedido pela mãe do gordo ao vencedor do prêmio de melhor livro infantil é batizado com o título do sábio Visconde de Sabugosa e tem a efígie do mítico e azarado sabugo de milho. Li o livro semana passada e é uma gostosa trama de suspense, com uma bela atuação da turma do gordo, composta nesse último livro pelo gordo (Bolachão) — líder da patota —, Berenice (sua namorada), Biquinha, Edmundo, Silvia, Mariazinha e Pituca. Também participam das cenas o irreverente mordomo Abreu, o desbocado frade João, o simpático delegado dr. Paixão, os pais do gordo (Marcelo e Celeste) e seu cachorro Pancho. Alguns personagens de outras aventuras, como Zé Tavares e Hugo Ciência, estão ausentes desta vez.
A meu ver, a grande "sacada" da coleção é tornar os personagens totalmente próximos ao leitor juvenil. Se esse leitor for paulistano, então, aí se torna vizinho de toda a turma do gordo: João Carlos Marinho fala de ruas e locais realmente existentes (a Berenice, por exemplo, mora na rua Fradique Coutinho), de colégios que de fato estão edificados na capital paulistana, tornando tudo muito crível e ao alcance de seu jovem público. Eu lembro que quando comecei a ler os livros tinha meus onze, doze anos, e no meu curso de inglês havia uma menina que para mim era a Berenice pura e perfeita. Por ela não ser ilustrada, era a imagem que eu tinha na cabeça, era assim que eu a tinha como menina daquela faixa etária, e é esse um mérito de João Carlos Marinho: trazer amigos reais para as crianças do ensino fundamental.
Como toda obra infantojuvenil de qualidade, esses livros não são indicados apenas a seu público-alvo. Quem puder se debruçar sobre essas histórias (doze, ao todo) de Bolachão e seus amigos irá ficar encantado com a espontaneidade na construção dos caracteres das personagens e com a sutileza do humor das tramas. E concluir que realmente uma série que agrada a leitores de diversas gerações há mais de quarenta anos há de ser uma série com ingredientes bastante especiais.
P.S.: No final dos anos 1990 troquei uma boa correspondência com João Carlos Marinho. As cartas são o testemunho do entusiasmo que os livros despertavam em um garoto que adorava ler e viver aventuras (e ainda adora, mesmo crescido).
A fórmula para os livros é em espírito bem simples: um punhado de crianças (com a idade parecida com a de seus leitores, uns dez, onze anos) vivendo aventuras e deparando-se com perigos e enrascadas. Sim, é uma ideia simples, em conceito; mas em execução a coisa é bem menos fácil do que dá a entender.
Eu vejo esses livros um pouco como seguindo as pegadas de Monteiro Lobato: histórias cujo único freio é o fim do livro, e até lá tudo pode acontecer, com muito humor e respeitando sempre o público leitor. Assim como as personagens lobatianas, os personagens da turma do gordo já viajaram pelo espaço, já encontraram entes sobrenaturais ou simplesmente vivem na gostosa modorra cotidiana que os espera em seu dia a dia de crianças.
Na verdade, essa aproximação é menos imaginada por mim que planejada pelo autor: João Carlos Marinho é grande apreciador da obra infantil de Monteiro Lobato, e inclusive pode-se encontrar em alguns livros teóricos/críticos sobre essas obras alguns comentários e análises que ele fez ao longo dos anos, debruçando-se sobre as pouco mais de vinte aventuras da turma do sítio de Dona Benta — vale consultar o excelente "Monteiro Lobato, livro a livro - Obra infantil", organizado por Lajolo e Ceccantini. É possível também encontrar em livros da turma do gordo várias referências às personagens e aventuras de Narizinho, Pedrinho, Emília e companhia. Dois exemplos: em um de seus livros uma personagem reclama por as criaturas lobatianas serem tão bem desenhadas nos livros, dando, na visão de Marinho, pouco espaço à imaginação construtiva dos leitores. Ele vai além nessa idiossincrasia e, por contrato, seus livros não podem ter NINGUÉM da turma desenhado; as ilustrações das obras são abstratas, colagens e afins, e ao leitor é negado o rosto gráfico de personagem que seja. É uma decisão bonita, algo anacrônica, bastante romântica. Isso já demonstra o quanto ele se importa com seu público, o que ele, como autor, espera de seus leitores. João Carlos Marinho não deseja leitores passivos.
O segundo exemplo que mencionei é extraído de seu mais recente livro do gordo (e, presumivelmente, o último, segundo ele declarou em entrevistas e palestras), "Assassinato na literatura infantil": o troféu concedido pela mãe do gordo ao vencedor do prêmio de melhor livro infantil é batizado com o título do sábio Visconde de Sabugosa e tem a efígie do mítico e azarado sabugo de milho. Li o livro semana passada e é uma gostosa trama de suspense, com uma bela atuação da turma do gordo, composta nesse último livro pelo gordo (Bolachão) — líder da patota —, Berenice (sua namorada), Biquinha, Edmundo, Silvia, Mariazinha e Pituca. Também participam das cenas o irreverente mordomo Abreu, o desbocado frade João, o simpático delegado dr. Paixão, os pais do gordo (Marcelo e Celeste) e seu cachorro Pancho. Alguns personagens de outras aventuras, como Zé Tavares e Hugo Ciência, estão ausentes desta vez.
A meu ver, a grande "sacada" da coleção é tornar os personagens totalmente próximos ao leitor juvenil. Se esse leitor for paulistano, então, aí se torna vizinho de toda a turma do gordo: João Carlos Marinho fala de ruas e locais realmente existentes (a Berenice, por exemplo, mora na rua Fradique Coutinho), de colégios que de fato estão edificados na capital paulistana, tornando tudo muito crível e ao alcance de seu jovem público. Eu lembro que quando comecei a ler os livros tinha meus onze, doze anos, e no meu curso de inglês havia uma menina que para mim era a Berenice pura e perfeita. Por ela não ser ilustrada, era a imagem que eu tinha na cabeça, era assim que eu a tinha como menina daquela faixa etária, e é esse um mérito de João Carlos Marinho: trazer amigos reais para as crianças do ensino fundamental.
Como toda obra infantojuvenil de qualidade, esses livros não são indicados apenas a seu público-alvo. Quem puder se debruçar sobre essas histórias (doze, ao todo) de Bolachão e seus amigos irá ficar encantado com a espontaneidade na construção dos caracteres das personagens e com a sutileza do humor das tramas. E concluir que realmente uma série que agrada a leitores de diversas gerações há mais de quarenta anos há de ser uma série com ingredientes bastante especiais.
P.S.: No final dos anos 1990 troquei uma boa correspondência com João Carlos Marinho. As cartas são o testemunho do entusiasmo que os livros despertavam em um garoto que adorava ler e viver aventuras (e ainda adora, mesmo crescido).
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Califa no lugar do califa
Uma coisa não se pode dizer de Iznogoud, o grão-vizir de Bagdá: ele não é uma pessoa incoerente. Há muitos e muitos anos ele persegue obstinadamente a mesma meta, ainda que de mil maneiras diferentes a cada oportunidade.
Desde sua primeira aparição, em 1962, o bizarro homenzinho de maneiras desagradáveis e aparência mal humorada tem o singelo desejo de destronar o comendador dos crentes e se tornar "califa no lugar do califa". E ao longo de seus quase trinta álbuns (e dezenas de pequenas histórias) Iznogoud tenta desesperadamente alcançar seu objetivo, das maneiras mais torpes possíveis.
O maior humorista dos quadrinhos europeus, René Goscinny, junto ao grande desenhista Jean Tabary (falecido no meio do ano passado, sem muito alarde), desenvolveu uma ambientação excepcional, que não engloba estritamente o gênero das "mil e uma noites": sim, vemos nas histórias do vil grão-vizir turbantes, tapetes, elefantes e toda sorte de apetrecho imediatamente reconhecível das narrativas de Sinbad, Aladdin e afins; mas também não é difícil esbarrar em extraterrestres, trabalhadores em greve e banhistas de final de semana! Essa "inverossimilhança" serve de pano de fundo para mil brincadeiras geniais com os costumes contemporâneos dos europeus e a cena política mundial, além de possibilitar uma variedade impressionante de tons e abordagens de desenvolvimento das personagens e das tramas, que não se prendem a qualquer convenção histórica ou geográfica.
Um dos grandes trunfos da série é o humor totalmente aloprado advindo de inacreditáveis jogos de palavras*, trocadilhos dos mais infames e piadas inacreditáveis. Um exemplo que li há pouco: Dilat Laraht ("Omar Vadinho", em português), o fiel parceiro do grão-vizir, toma uma poção ofertada por seu maléfico amigo e encolhe até minúsculas proporções — evidentemente ele foi cobaia de mais um plano de Iznogoud para virar califa no lugar do califa —, após o quê, no bolso do dissimulado conspirador, queixa-se, ao não ser ouvido em suas críticas: "sinto-me tão diminuído!". Goscinny, o magnífico autor de obras-primas de Asterix, Lucky Luke, Petit Nicolas e outros perfeitos filhos, diverte-se absurdamente com a total falta de amarras e desenvolve as histórias da maneira mais maluca possível sempre, não sendo raro e nem inesperado deparar-se com finais absurdos, grotescos, sempre engraçadíssimos. Tabary, artista de imaginação poderosa, confere as mais hilárias expressões a seus personagens, e já do frontispício de cada edição podemos conferir seu talento: trata-se de um amontoado de Iznogouds, em determinados estados de espírito, falando sempre e sempre que "quero ser califa no lugar do califa", com atos que vão do desespero profundo ao mais cego ódio!
O alvo de tanta inveja é o califa Haroun El Poussah (no Brasil, "Harum Ahal Mofada"), um soberano gordo e bom ("eu sou bom", ele diz ao ganhar jogos contra os súditos), ingênuo e inocente como uma criança de colo. Com sua cara de boi manso, o califa acredita piamente nos grandes serviços prestados pelo "fiel" Iznogoud a ele e a Bagdá. Entende cada insulto como carinho, cada plano conspiratório como uma divertida brincadeira. Iznogoud a cada instante quer a sua cabeça, matá-lo, exterminá-lo, escorraçá-lo, expulsá-lo, enfim, vê-lo por trás — mas o califa não se nega nunca a companhia "do meu bom Iznogoud", um "amigo" sempre disposto a animá-lo e entretê-lo. Uma coisa a ser dita: é impossível torcer por esse vilão! A graça das histórias é vê-lo se estrepando das maneiras mais embaraçosas possíveis...
É um mote tão delirante que é de se admirar como Goscinny e Tabary conseguem endoidecer ainda mais as narrativas! O fato é que a qualidade virtualmente inquestionável do material (possivelmente das coisas mais cômicas já feitas em quadrinhos) assegurou a Iznogoud uma popularidade que ainda hoje se mantém bastante firme. Nos últimos anos, além de algumas histórias que sobraram de Goscinny (infelizmente morto precocemente em 1977) e tramas de Tabary sozinho ou com outros autores, o imundo grão-vizir também foi homenageado com uma série de desenhos animados, jogos eletrônicos e até mesmo um filme live-action!
Aqui mesmo no Brasil ele chegou a fazer considerável sucesso, tendo várias de seus primeiros álbuns editados pela Record alguns anos atrás, além de breves passagens por outros selos editoriais. O filme foi exibido também há anos em alguns canais a cabo brasileiros, a Folha lançou um jogo seu para computador e o desenho animado foi igualmente passado por estas bandas. Prova da universalidade da comédia apaixonada, contundente e livremente ensandecida dos grandes Goscinny e Tabary. Que Iznogoud voe num tapete mágico e volte para cá o mais cedo possível: no Brasil, o que não falta são califas para serem derrubados.
* Para quem não percebeu, o próprio nome do grão-vizir é um...
Desde sua primeira aparição, em 1962, o bizarro homenzinho de maneiras desagradáveis e aparência mal humorada tem o singelo desejo de destronar o comendador dos crentes e se tornar "califa no lugar do califa". E ao longo de seus quase trinta álbuns (e dezenas de pequenas histórias) Iznogoud tenta desesperadamente alcançar seu objetivo, das maneiras mais torpes possíveis.
O maior humorista dos quadrinhos europeus, René Goscinny, junto ao grande desenhista Jean Tabary (falecido no meio do ano passado, sem muito alarde), desenvolveu uma ambientação excepcional, que não engloba estritamente o gênero das "mil e uma noites": sim, vemos nas histórias do vil grão-vizir turbantes, tapetes, elefantes e toda sorte de apetrecho imediatamente reconhecível das narrativas de Sinbad, Aladdin e afins; mas também não é difícil esbarrar em extraterrestres, trabalhadores em greve e banhistas de final de semana! Essa "inverossimilhança" serve de pano de fundo para mil brincadeiras geniais com os costumes contemporâneos dos europeus e a cena política mundial, além de possibilitar uma variedade impressionante de tons e abordagens de desenvolvimento das personagens e das tramas, que não se prendem a qualquer convenção histórica ou geográfica.
Um dos grandes trunfos da série é o humor totalmente aloprado advindo de inacreditáveis jogos de palavras*, trocadilhos dos mais infames e piadas inacreditáveis. Um exemplo que li há pouco: Dilat Laraht ("Omar Vadinho", em português), o fiel parceiro do grão-vizir, toma uma poção ofertada por seu maléfico amigo e encolhe até minúsculas proporções — evidentemente ele foi cobaia de mais um plano de Iznogoud para virar califa no lugar do califa —, após o quê, no bolso do dissimulado conspirador, queixa-se, ao não ser ouvido em suas críticas: "sinto-me tão diminuído!". Goscinny, o magnífico autor de obras-primas de Asterix, Lucky Luke, Petit Nicolas e outros perfeitos filhos, diverte-se absurdamente com a total falta de amarras e desenvolve as histórias da maneira mais maluca possível sempre, não sendo raro e nem inesperado deparar-se com finais absurdos, grotescos, sempre engraçadíssimos. Tabary, artista de imaginação poderosa, confere as mais hilárias expressões a seus personagens, e já do frontispício de cada edição podemos conferir seu talento: trata-se de um amontoado de Iznogouds, em determinados estados de espírito, falando sempre e sempre que "quero ser califa no lugar do califa", com atos que vão do desespero profundo ao mais cego ódio!
O alvo de tanta inveja é o califa Haroun El Poussah (no Brasil, "Harum Ahal Mofada"), um soberano gordo e bom ("eu sou bom", ele diz ao ganhar jogos contra os súditos), ingênuo e inocente como uma criança de colo. Com sua cara de boi manso, o califa acredita piamente nos grandes serviços prestados pelo "fiel" Iznogoud a ele e a Bagdá. Entende cada insulto como carinho, cada plano conspiratório como uma divertida brincadeira. Iznogoud a cada instante quer a sua cabeça, matá-lo, exterminá-lo, escorraçá-lo, expulsá-lo, enfim, vê-lo por trás — mas o califa não se nega nunca a companhia "do meu bom Iznogoud", um "amigo" sempre disposto a animá-lo e entretê-lo. Uma coisa a ser dita: é impossível torcer por esse vilão! A graça das histórias é vê-lo se estrepando das maneiras mais embaraçosas possíveis...
É um mote tão delirante que é de se admirar como Goscinny e Tabary conseguem endoidecer ainda mais as narrativas! O fato é que a qualidade virtualmente inquestionável do material (possivelmente das coisas mais cômicas já feitas em quadrinhos) assegurou a Iznogoud uma popularidade que ainda hoje se mantém bastante firme. Nos últimos anos, além de algumas histórias que sobraram de Goscinny (infelizmente morto precocemente em 1977) e tramas de Tabary sozinho ou com outros autores, o imundo grão-vizir também foi homenageado com uma série de desenhos animados, jogos eletrônicos e até mesmo um filme live-action!
Aqui mesmo no Brasil ele chegou a fazer considerável sucesso, tendo várias de seus primeiros álbuns editados pela Record alguns anos atrás, além de breves passagens por outros selos editoriais. O filme foi exibido também há anos em alguns canais a cabo brasileiros, a Folha lançou um jogo seu para computador e o desenho animado foi igualmente passado por estas bandas. Prova da universalidade da comédia apaixonada, contundente e livremente ensandecida dos grandes Goscinny e Tabary. Que Iznogoud voe num tapete mágico e volte para cá o mais cedo possível: no Brasil, o que não falta são califas para serem derrubados.
* Para quem não percebeu, o próprio nome do grão-vizir é um...
Assinar:
Postagens (Atom)