segunda-feira, 4 de junho de 2012

Califa no lugar do califa

Uma coisa não se pode dizer de Iznogoud, o grão-vizir de Bagdá: ele não é uma pessoa incoerente. Há muitos e muitos anos ele persegue obstinadamente a mesma meta, ainda que de mil maneiras diferentes a cada oportunidade.

Desde sua primeira aparição, em 1962, o bizarro homenzinho de maneiras desagradáveis e aparência mal humorada tem o singelo desejo de destronar o comendador dos crentes e se tornar "califa no lugar do califa". E ao longo de seus quase trinta álbuns (e dezenas de pequenas histórias) Iznogoud tenta desesperadamente alcançar seu objetivo, das maneiras mais torpes possíveis.



O maior humorista dos quadrinhos europeus, René Goscinny, junto ao grande desenhista Jean Tabary (falecido no meio do ano passado, sem muito alarde), desenvolveu uma ambientação excepcional, que não engloba estritamente o gênero das "mil e uma noites": sim, vemos nas histórias do vil grão-vizir turbantes, tapetes, elefantes e toda sorte de apetrecho imediatamente reconhecível das narrativas de Sinbad, Aladdin e afins; mas também não é difícil esbarrar em extraterrestres, trabalhadores em greve e banhistas de final de semana! Essa "inverossimilhança" serve de pano de fundo para mil brincadeiras geniais com os costumes contemporâneos dos europeus e a cena política mundial, além de possibilitar uma variedade impressionante de tons e abordagens de desenvolvimento das personagens e das tramas, que não se prendem a qualquer convenção histórica ou geográfica.

Um dos grandes trunfos da série é o humor totalmente aloprado advindo de inacreditáveis jogos de palavras*, trocadilhos dos mais infames e piadas inacreditáveis. Um exemplo que li há pouco: Dilat Laraht ("Omar Vadinho", em português), o fiel parceiro do grão-vizir, toma uma poção ofertada por seu maléfico amigo e encolhe até minúsculas proporções — evidentemente ele foi cobaia de mais um plano de Iznogoud para virar califa no lugar do califa —, após o quê, no bolso do dissimulado conspirador, queixa-se, ao não ser ouvido em suas críticas: "sinto-me tão diminuído!". Goscinny, o magnífico autor de obras-primas de Asterix, Lucky Luke, Petit Nicolas e outros perfeitos filhos, diverte-se absurdamente com a total falta de amarras e desenvolve as histórias da maneira mais maluca possível sempre, não sendo raro e nem inesperado deparar-se com finais absurdos, grotescos, sempre engraçadíssimos. Tabary, artista de imaginação poderosa, confere as mais hilárias expressões a seus personagens, e já do frontispício de cada edição podemos conferir seu talento: trata-se de um amontoado de Iznogouds, em determinados estados de espírito, falando sempre e sempre que "quero ser califa no lugar do califa", com atos que vão do desespero profundo ao mais cego ódio!

O alvo de tanta inveja é o califa Haroun El Poussah (no Brasil, "Harum Ahal Mofada"), um soberano gordo e bom ("eu sou bom", ele diz ao ganhar jogos contra os súditos), ingênuo e inocente como uma criança de colo. Com sua cara de boi manso, o califa acredita piamente nos grandes serviços prestados pelo "fiel" Iznogoud a ele e a Bagdá. Entende cada insulto como carinho, cada plano conspiratório como uma divertida brincadeira. Iznogoud a cada instante quer a sua cabeça, matá-lo, exterminá-lo, escorraçá-lo, expulsá-lo, enfim, vê-lo por trás — mas o califa não se nega nunca a companhia "do meu bom Iznogoud", um "amigo" sempre disposto a animá-lo e entretê-lo. Uma coisa a ser dita: é impossível torcer por esse vilão! A graça das histórias é vê-lo se estrepando das maneiras mais embaraçosas possíveis...

É um mote tão delirante que é de se admirar como Goscinny e Tabary conseguem endoidecer ainda mais as narrativas! O fato é que a qualidade virtualmente inquestionável do material (possivelmente das coisas mais cômicas já feitas em quadrinhos) assegurou a Iznogoud uma popularidade que ainda hoje se mantém bastante firme. Nos últimos anos, além de algumas histórias que sobraram de Goscinny (infelizmente morto precocemente em 1977) e tramas de Tabary sozinho ou com outros autores, o imundo grão-vizir também foi homenageado com uma série de desenhos animados, jogos eletrônicos e até mesmo um filme live-action!



Aqui mesmo no Brasil ele chegou a fazer considerável sucesso, tendo várias de seus primeiros álbuns editados pela Record alguns anos atrás, além de breves passagens por outros selos editoriais. O filme foi exibido também há anos em alguns canais a cabo brasileiros, a Folha lançou um jogo seu para computador e o desenho animado foi igualmente passado por estas bandas. Prova da universalidade da comédia apaixonada, contundente e livremente ensandecida dos grandes Goscinny e Tabary. Que Iznogoud voe num tapete mágico e volte para cá o mais cedo possível: no Brasil, o que não falta são califas para serem derrubados.



* Para quem não percebeu, o próprio nome do grão-vizir é um...

4 comentários:

Lúcia disse...

A própria expressão "Califa no lugar do Califa" é de uma genialidade absurda! Definitivamente preciso reler.
Ah, confesso que tinha um pouco de preconceito com essas animações de BD tipo a do Iznogoud e a do Marsupilami (claro que tintin não se enquadra)... Quando você já tem uma visão bonitinha dos personagens na sua cabeça fica um pouco difícil aceitar vozes e ritmos impostos... Também não sou a maior fã das fitas de desenho do astérix, mas já me animaram de rever pelo menos o cleópatra.

Filipe Chamy disse...

Eu não curto muito esses desenhos também não, viu. Acho uma animação bem precária, no geral. Mas o Astérix pelo menos tem um longa animado verdadeiramente genial (que não foi baseado em álbum nenhum): "Os doze trabalhos de Asterix"!

Concordo que a expressão "califa no lugar do califa" é magnífica! Goscinny autor primoroso sempre. Com relação a esses personagens que ele roteirizou (Lucky Luke, Astérix etc.) é visível — e virtualmente inquestionável — a queda de qualidade acarretada com os roteiros de outros autores após sua morte...

E você soube que estão filmando um live action do Marsupilami?

Hunter disse...

"Os doze trabalhos de Asterix" não é baseado em álbum nenhum, mas foi escrito, produzido e dirigido pelo próprio Goscinny (junto com Uderzo e o humorista Pierre Tchernia) quando ele teve seu próprio estúdio de animação (em parceria com Uderzo e Georges Dargaud).

O outro longa de animação que o estúdio fez foi o excelente "A balada dos Dalton", desta vez com Morris e Tchernia.

Infelizmente o estúdio fechou logo a seguir à morte de Goscinny.

Filipe Chamy disse...

Sim, o Goscinny estava muito envolvido nesse filme. E por isso ele é ótimo, o cara onde tocava virava ouro narrativo e cômico.

Esse do Lucky Luke eu vi há muito tempo, preciso rever. Uma pena o estúdio ter sido fechado, mas também onde encontrariam roteirista à altura?