segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Mister No

 Mister No é uma série criada por Sergio "Guido Nolitta" Bonelli em 1975 e encerrada em finais dos anos 2000 (pouco antes de seu autor, o legendário editor/roteirista, morrer, em 2011).

As particularidades da série são muitas, e seu principal atrativo é o anti-herói que lhe dá nome: Mister No, aliás Jerry Drake, piloto americano que lutou na Segunda Guerra Mundial e na Guerra da Coreia. Mas Mister No não é uma aventura de guerra, ou não exatamente. O próprio pseudônimo do protagonista já dá o tom do inconformismo: o "no" é devido a sua negação, sua recusa em querer tirar as vidas dos outros, em combater em nomes de ideais espúrios, em entrar em batalhas inúteis e sangrentas. Fugindo da violência, Jerry Drake resolve se estabelecer numa terra quente e afetuosa: o Brasil!

Sim, o Brasil amazônico, que Sergio Bonelli tanto amava e conhecia, é o cenário da maior parte das aventuras do piloto de cabelos desgrenhados e que começam, pela base, a ficar grisalhos. O curioso (e triste) é que aqui no Brasil, onde as editoras Record e Mythos publicaram algumas poucas dezenas de aventuras suas, ele nunca foi muito popular. Suas histórias na Amazônia, no Pantanal e em outros lugares de nossa geografia próxima não chegaram a emocionar um contingente de leitores necessário para que suas aventuras prosseguissem em nossas bancas.

Fato lamentabilíssimo, e bastante incompreensível — Mister No possui todos os ingredientes para agradar a muita gente: tensão, aventura, romance, muito humor e um personagem incrivelmente simpático: Mister No é alguém que foge da brutalidade e dos horrores que experimentou ao tirar a vida de pessoas, mas sempre é tragado para conflitos que o fazem relembrar e revisitar essas torturas. Mas ao contrário do que possa parecer, a série idealizada e roteirizada (por muitos anos) por Guido Nolitta não é essencialmente ácida ou denunciatória, mas humana. São reflexões sobre nossa humanidade, nosso espírito de solidariedade, o apelo que a ecologia, a alegria e a fraternidade possuem sobre nós.

Ao longo dos anos, Mister No apresentou uma invejável variedade de estilos de desenho e desenvolvimento narrativo, por gente como Claudio Nizzi, Fabio Civitelli, Franco Bignotti, Gallieno Ferri (o genial capista e desenhista-mor de Zagor, que foi o criador gráfico deste nosso belo piloto), Alfredo Castelli, Tiziano Sclavi e até mesmo o mítico brasileiro Eugênio Colonnese (único brasileiro que já trabalhou para a Bonelli); mas de todos esses grandes artistas, os dois maiores artífices da personalidade e do acabamento da série foram mesmo seu criador, o magnífico Nolitta, e um desenhista que aos poucos foi tomando conta do personagem até defini-lo a sua imagem e com uma força expressiva assombrosa: Roberto Diso. Foi Diso quem mudou a imagem que Ferri havia criado para Mister No, atualizando seus trajes (ele usava uma jaqueta e um lenço amarelo no pescoço), bagunçando seu até então arrumadinho cabelo e dotando-o dessa malícia engraçada que o faz ser marcante em cenas como as das frequentes bebedeiras (por desilusão ou por hábito) e aquelas em que se envolve, mulherengo, com belíssimas moças — entre as quais se destaca sua frequente amiga e paixão disfarçada Patricia Rowland, arqueóloga voluntariosa e decidida. No maior fórum bonelliano brasileiro, é possível ver algumas belas ilustrações de Diso e outros artistas.

Mister No é um sujeito expansivo, que vive afastado da "civilização" na Manaus de décadas atrás — que ainda começava a se desenvolver no que chamamos de "progresso" — e só quer ser deixado em paz e viver de pequenos expedientes e voos turísticos, levando passageiros em seu velho e (pouco) confiável piper. Seu grande amigo é, podemos dizer, o ex-combatente alemão Esse-Esse, ou melhor, Otto Krueger, simpático chucrute que também se cansou de ceifar vidas em nome de ideais políticos questionáveis. Há nas páginas de Mister No pensamentos tristes sobre o futuro das nações e do desenvolvimentismo bélico, mas também há espaço para a beleza natural, com paisagens e animais que hoje nos parecem distantes porque em vias de extinção, e também encontramos nas histórias muitas razões para acreditar nas pessoas que querem fazer a diferença e dar sua contribuição a um mundo mais sereno e mais amigo.

Por tudo isso e por muito mais, Mister No é um quadrinho que marcou a minha vida e me acompanha sempre, e que desejo muito que possa voltar algum dia a ser publicado na "terra adotiva" de Jerry Drake/Sergio Bonelli, conseguindo enfim todo o sucesso que merece e que nunca lhe deveria ser negado.

Oh, when the saints go marchin' in...

Bônus: Roberto Diso desenhando, a meu pedido, Mister No e Patricia. Pude encontrar o grande artista na última edição do Fest Comix de São Paulo, há dois dias.

 


Atualização (23/10/12): No Blog do Zagor comento sobre meu encontro com outra personalidade bonelliana que apareceu no Fest Comix - Moreno Burattini. 

Atualização 2 (24/10/12): No Blog do Tex, meu terceiro e último (re)encontro bonelliano do Fest Comix - Fabio Civitelli.

9 comentários:

Anônimo disse...

"O curioso (e triste) é que aqui no Brasil, onde as editoras Record e Mythos publicaram algumas poucas dezenas de aventuras suas, ele nunca foi muito popular. Suas histórias na Amazônia, no Pantanal e em outros lugares de nossa geografia próxima não chegaram a emocionar um contingente de leitores necessário para que suas aventuras prosseguissem em nossas bancas."

Penso que uma parcela deve-se ao fato de que as pessoas, mesmo os amantes de HQs, são relutantes em compram quadrinhos em preto e branco e também não há uma publicidade legal mesmo em cima das obras de Bonelli. Quem o conhece é porque já curtia das antigas ou então um fã de pouco tempo que tem alguma referência que o levou a se interessar.

Apesar dos check lists, é difícil ver publicidade e divulgação em cima das obras de Bonelli. Mas isso é apenas um ponto de vista meu.

Filipe Chamy disse...

Mas é verdade. Eu vivo falando que a Mythos falha feio nisso de divulgação. Já não basta os quadrinhos saírem por aqui em horrorosos "formatinhos", que mutilam a arte original, eles são bastante desconhecidos por todos. É preciso o esforço não só dos leitores, mas da editora... Torçamos para que um dia isso aconteça.

E sim, é verdade: Tex e Zagor sobrevivem (e relativamente bem) porque são quadrinhos antigos e que foram amplamente divulgados décadas atrás, a paixão do colecionismo vai passando de pai pra filho e prossegue, só que na mesma família. Atrair leitores novos é cada vez mais um desafio, ainda mais com títulos que não possuem tanta tradição no Brasil, e mesmo com personagens que ainda não foram publicados aqui. É um problemão...

Anônimo disse...

Espero que artigos como os teus possam contribuir para o interesse das pessoas. Está muito bem escrito e é nítido o sentimento envolvido.

Abraços. Fabiano Caldeira.

Filipe Chamy disse...

Tomara, Fabiano. Despertar interesse nas pessoas é um dos meus principais objetivos!

Unknown disse...

É uma pena que essa revista tenha deixado de sair. Eu a comprava em 1991, pela Editora Record. Foi a melhor revista em quadrinhos que já vi.
Mister No é muito superior a Tex e Zagor: é muito mais humano que os dois, muito mais próximo da realidade!
As histórias se passam na Amazônia, e o gringo doido é um tremendo simpático, todos gostam dele, com exceção das pessoas muito puristas, e de certos policiais abusados.
Mister No se dá a aventuras amorosas de vez em quando, é um baita pé-de-cana, adora uma caipirinha, uma cachaça, mistura-se com todos, de quaisquer classes sociais, é um cara muito legal, humano, risonho, não é imbatível (de vez em quando ele apanha pra caramba)... ele é tudo que todo herói de HQ deveria ser!
As histórias dele não são só entretenimento. Muitas vezes valem por aulas de História, tamanho é o número de informações contidas nelas, informações culturais de toda espécie.
Seus amigos são impagáveis, e todos também muito simpáticos. Até mesmo o ex-combatente nazista Esse-Esse, que de nazista não tem nada. E Mister No até tem namorada, Patrícia Rowland, uma linda americana!
Os desenhistas são da melhor qualidade, as histórias também. Histórias muito mais palatáveis que as de Tex, mais descontraídas, e mais próximas de nossa realidade, onde as mentes das pessoas são mais abertas que as de antes do século XX.
Uma pena Mister No ter saído de circulação. Pra mim, a melhor revista em quadrinhos que já li. Mister No adora o Brasil, adora a Amazônia, o samba, as coisas brasileiras... um tipo mais brasileiro que americano, sem dúvida. Um cara de consciência ecológica incrível, e um ser humano de excelente caráter, apesar de ser meio doido e ter de viver em meio à violência, por mais que tente escapar dela.
Enfim, Mister No é o cara!
Pena que os leitores de HQ brasileiros não tenham visto isso, e prefiram Tex e Zagor, que também são dois excelentes personagens, não se pode negar, mas que nem de longe têm a mesma espontaneidade que Mister No, a mesma qualidade de errar, de se arrepender do que faz, de ter medo, de não ganhar todas... enfim, de ser mais humano!

Unknown disse...

E parabéns a você, Filipe, por elaborar um blog sobre esse inimitável personagem!
Fazia falta um blog sobre Mister No, e este seu é o único sobre ele em que o vejo descrito como ele realmente é! É o mais completo blog que já vi sobre o simpático gringo piloto! Existem mais blogs sobre Mister No do que se possa pensar a priori, mas este seu, Filipe, é o único em que vi o assunto ser abordado em profundidade e com seriedade!
Parabéns, Filipe! E um viva a Jerry Drake, o famoso Mister No, que jamais será esquecido por uma grande legião de fãs, que infelizmente não é tão levada em conta como deveria!

Filipe Chamy disse...

Puxa, que bom que você gostou do texto! Obrigado! Ele saiu bem "aprofundado" porque realmente eu tenho grande paixão por Jerry Drake... Que volte logo a nossas bancas! Também gosto (bem) mais dele que de Tex, mas acho que Zagor é igualmente humano (crias do Nolitta, né?), apesar de Mister No ser muito mais falível e isso aumentar ainda mais nossa empatia...

Sangue de Judas, que saudades do piloto...

Unknown disse...

Estou com muitas saudades de Mister No! Adoro também o Esse-Esse, a arqueóloga Patrícia, o cantor Dana Winter, e outros amigos do famoso piloto maluco de Manaus!
As melhores histórias que já li até hoje do piloto foram "Tango Martinez" (a cena de Mister No beijando uma noiva na boca na hora do casamento dela é de lascar! Rsrsrs! Só um doido como ele faria isso, ainda mais fugindo dos tiros dos capangas de Mister Taft!), "Destino Haiti" (Mister No enfrentando os sacerdotes do Vodu e os Tonton Macoutes), "A Vingança do Zagaieiro" (Mister No e seu amigo Raffles se embrenhando no pantanal mato-grossense e enfrentando os piores perigos possíveis), "Agente Secreto Zeta-3" (Mister No e Esse-Esse às voltas com remanescentes dos nazistas, espalhados pela América do Sul), "Terra Cruel" (Mister No trabalhando para inescrupulosos empreiteiros que querem fazer a Rodovia Transamazônica avançar, sem respeitar a vida e a paz dos indígenas. Mister No quebra a cara de todos eles), "Rio Negro" (Mister No conhece a arqueóloga Patricia Rowland e o cantor Dana Winter, e partem floresta adentro em busca de uma pirâmide maia! Patricia vira namorada de Mister No e Dana Winter vira um fiel amigo do piloto doido!), "Cangaceiros" (Mister No em pleno sertão baiano, enfrentando um coronel patife que queria exterminar todos os remanescentes do bando de Lampião e Corisco!), "Jogo Sujo" (o piloto vai trabalhar para um ricaço americano que se instalou em Manaus, e descobre depois que esse ricaço é um tremendo vigarista, traficante de drogas, e se revolta contra ele e seus capangas) e "Alguém Viu Carlos Gomes?" (excelente história em que Mister No parte atrás de Carlos Gomes, um homem jurado de morte, e tenta salvá-lo de seus algozes)!
Todas essas histórias são excelentes, bem mais vivas que as de Tex, na minha opinião! Mister No faz mais o meu tipo: não dispensa um namoro, uma caipirinha, um samba, é um homem forte mas ao mesmo tempo também apanha muito dos adversários (Tex nunca apanha! Eu hein!)! E os desenhos são excelentes, com gente do calibre dos grandes F. Bignotti, V. Monti, Donatelli, e Roberto Diso (esse é o desenhista que criou o perfil ideal para Mister No! Tentou desenhar para Tex, mas Tex não ficou bem com Diso, enquanto que com Mister No os desenhos de Diso ficam maravilhosos!)!
No mais, parabéns, Filipe Chamy! Espero que o gringo doido volte às nossas bancas! Ora, ele está em casa, pois Manaus fica no nosso país! Pode vir à hora que quiser que será bem-vindo, Mister No, grande guerreiro, seu doidão! Realmente, que saudades do Mister No, por minha alma!

Filipe Chamy disse...

Que comentário lindo! Deu uma saudade enorme de tantas aventuras inesquecíveis e maravilhosas! Sem dúvida um personagem magnífico, com um mundo cheio de irreverência, humor, ternura e personagens fabulosos... Torço demais pela sua volta, mas ela parece utopia...