sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Os quatro romances de Lygia Fagundes Telles

Em 2008 li Ciranda de pedra e fiquei muito impressionado. Aos poucos fui lendo outros livros de Lygia Fagundes Telles, e verdade que se poucos me impressionaram tanto quanto o primeiro (meu outro favorito dela é um de contos, Seminário dos ratos), foi muito bom ir aos poucos lendo o resto de sua obra e acompanhar paulatinamente sua evolução de temas, personagens e estilos. Terminei ontem seu último romance, As horas nuas, lendo cada um deles na ordem em que foram escritos/publicados. Eu vejo uma nítida gradação de alguns temas, e mesmo a meu ver suas personagens vão envelhecendo junto com ela. Comentando brevemente cada um dos livros:

Ciranda de pedra (a infância): concentra-se em Virgínia, jovem que se vê às voltas com as diferenças entre o que esperam/querem dela e as percepções que possui do mundo e da vida. Com uma narração extremamente delicada e sugestiva, acompanhamos o crescendo do inconformismo da moça e suas relações problemáticas com as irmãs (Bruna e Otávia), sua paixão (o indeciso Conrado) e os adultos que vagueiam ao redor dela um pouco como espectros, sem adentrar seu mundo e sem procurar compreendê-la. Aparecem na trama assuntos polêmicos como eutanásia, loucura, suicídio, lesbianismo, incompatibilidade familiar. O livro foi bem recebido e colocou a autora, que havia publicado livros de contos com relativa repercussão, em destaque na nova literatura contemporânea brasileira. Foi adaptado duas vezes para novelas televisivas, que, não sabendo lidar com o material "controverso" do romance, pasteurizaram o livro até as raias do inócuo e insosso. Virgínia é uma personagem solitária, que precisa encontrar em si mesma, sem qualquer ajuda exterior, a força para seguir adiante mesmo com suas dúvidas e temores, em meio a grotescos cotidianos. Considero um pouco um "romance casulo", e Virgínia passará de lagarta a borboleta até o final da narrativa. Publicado em 1954.

Verão no aquário (a adolescência): Raíza é a jovem da vez. Menos reprimida que Virgínia, a jovem desfila de calcinha pela casa e se interessa por um homem mais velho, entrando em uma disputa "fria" com a própria mãe, que evidentemente não a entende. O confronto entre a imaturidade da juventude e a experiência grave e culpada de uma figura mais velha autoritária (mesmo que involuntariamente) é um dos principais elos entre todos os quatro romances; mas aqui se começa a discutir problemas psicológicos mais graves, e também as drogas vão se insinuando, o sexo como forma de punição passa a co-existir com certo desprezo pelas pessoas (notadamente por Marfa, desagradável presença)  — uma vaga misantropia que passa a ser mais acentuada pela mudança estilística que faz Raíza, diferentemente de Virgínia, exprimir-se em primeira pessoa. A jovem parece serenar um pouco próximo ao fim do romance — um pouco o caminho contrário seguido pelo Eduardo Marciano de O encontro marcado, de Fernando Sabino, que possui muitas semelhanças com a moça —, quando ocorre um acontecimento que pode ser definido como o clímax do relato, divisor de águas na personalidade de Raíza. Publicado em 1963.

As meninas (a mocidade): talvez o romance mais ambicioso de Lygia Fagundes Telles, com uma profusão de temas e pontos de vista, pois desta feita temos três narradoras - Lia, a "guerrilheira", Ana Clara, a perdida nas drogas, e Lorena, a burguesa em crise. O livro é intercalado pelas diferentes vozes narrativas, com diversas pontuações, vocabulários e mentalidades. Possivelmente a narração mais bela seja a de Ana Clara, totalmente despida de vírgulas, num torpor visceral que é quase como uma confissão ao leitor. Mas a personagem mais "positiva" é Lorena, que talvez seja a única das três meninas que afinal pode se salvar ainda. Nesta história vemos relatos intensos sobre a ditadura militar brasileira e seus métodos de tortura, o reacionarismo social e a decadência de valores da classe média. É o livro mais famoso e aclamado da escritora, ganhador de vários prêmios e inclusive adaptado para o cinema. Escrito durante os anos mais repressores do regime militar, demonstrando uma inquietação algo corajosa e uma proposta política de conscientização até então sublimada em sua ficção, além de potencializar o drama e o contexto por que passam as personagens ao longo do livro. Publicado em 1973.

As horas nuas (a maturidade): o romance com mais perspectivas, e pela primeira vez algumas masculinas. Pode-se centrar o discurso em dois núcleos: Rosa Ambrósio, os três amores da atriz decadente e alcoólatra, e seu gato Rahul, visionário de vidas passadas e crítico da civilização; e Ananta, a introspectiva psicóloga/terapeuta de Rosa Ambrósio, e seu primo Renato. O discurso alterna-se entre direto e indireto livre, causando por vezes estranhamento pelo ritmo irregular. É o romance menos convencional da autora, e ao final praticamente nenhuma intriga ou conflito é resolvido, mesmo após uma guinada que praticamente muda o gênero de ação e propõe um novo problema (com uma substituição de personagens bastante curiosa); é como se a narrativa apenas se houvesse ocupado de breves instantes retirados de suas vidas, como fotografias retratando momentos aleatórios de existências que nunca chegamos a compreender realmente. Também é seu romance mais parecido com seus contos, adotando em certas passagens elementos do sobrenatural, do hermético emocional e de um jogo de espelhos intrincado e sem solução. Publicado em 1989.

Lygia, aos 89 anos, fica nos devendo um romance sobre a velhice (a velhice temida por Rosa Ambrósio e sequer cogitada por Virgínia). O principal problema que vejo em seus romances é o acúmulo de interjeições/imprecações que se repetem, como chavões ("compreende?", "pombas", "ô! meu pai"), e tornam de alguma maneira aquelas personagens mais estereotipadas e menos críveis. Ciranda de pedra não possui esse recurso, e também é o único de seus romances narrado exclusivamente em terceira pessoa (onisciente). Talvez por isso, ou por eu gostar muito de histórias sobre a juventude, seja meu favorito — mas também acho que por Virgínia me lembrar um pouco a Suzanne de À nos amours, um dos meus filmes favoritos e retrato perfeito das perturbações que separam a vida infantil da adulta.

O quinto romance de Lygia Fagundes Telles, sempre prometido e anunciado mas nunca parido, ainda está por nascer.

9 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Meu amigo,
Como já te disse, a Lygia é a minha escritora predileta, ao lado da Cecília Meirelles - que além de poeta, tem contos maravilhosos.

Gostei muito das suas breves análises. Não concordo quando detona a primeira telenovela sobre Ciranda de Pedra - é ótima. A segunda não assisti, mas sei que mudaram perfil de personagens, como o da Letícia, por exemplo.
Adoro as interjeições que acha clchês. E quanto à linguagem, acho imbatível a narração da Lorena Vaz Leme, minha personagem preferida.
Gosto muito também da Rosa Ambrósio, e de tantas outras, como a Virgínia, que, parece-me, é a sua preferida.
Um abração
Adilson Marcelino

Filipe Chamy disse...

Oi, Adilson!

Como um "mea culpa", não cheguei a ver muito da primeira versão da novela, mas a própria Lygia foi quem disse que eles "acovardaram" e fizeram uma versão insípida.

Já a segunda eu vi, praticamente inteira. Uma novela horrorosa, mal atuada, mal dirigida, mal escrita... Das piores que já vi! Nem parece ter vindo de um romance tão bonito e expressivo... Fora que me desagrada um pouco botarem o foco na Laura e não na Virgínia, que virou coadjuvante.

Sim, Virgínia é a minha favorita! Eu gostei tanto que cheguei a escrever na época um breve conto protagonizado por uma menina chamada Virgínia, e o dediquei à Lygia. Cheguei a entregar a ela, mas duvido que ela tenha lido, hehe.

Adilson Marcelino disse...

Meu caro,

Pode ser também porque quando vi Ciranda de Pedra, que foi no inicio da década de 1980, eu ainda não conhecia a Lygia. Só fui conhecer sua obra em 1986, quando comecei meu curso de Letras.
Ainda assim, tenho ótima lembrança da novela, que já era bonita desde a abertura com a música cantada pelo Quarteto em Cy. E nela a Virgínia, feita pela Lucélia Santos, tinha muito espaço - era a protagonista ao lado de Eva Wilma, a Laura.
Também gosto muito de Ciranda de Pedra, da Virgínia, Otávia, Bruna, Daniel, etc.
Bacana saber do conto. E a Lygia deve ter lido sim, não me parece ser estilo dela menosprezar um leitor.
Aliás, quando fui em uma palestra dela, aqui em BH, ela, inclusive, disse sobre a importância do leitor. Em um dos livros, não me lembro agora, ela até escreve sobre isso.
Mas como te disse, minha maior paixão mesmo é As Meninas. Devo ter lido umas 10 vezes.
Tem uma história curiosa.
Minha paixão pelo livro é tamanha, que toda vez que ia em um sebo que tinha aqui em BH eu comprava um exemplar, ou ficava querendo, para dar de presente.
Uma dos donos do sebo ria muito e já dizia quando me via:
- tem As Meninas.
rsrrs.
Amo de paixão a Lorena Vaz Melo, a Ana Clara Conceição, e a Lia de Melo Shultz.
Um abração

Filipe Chamy disse...

Muito bacana essa história, Adilson. Eu acho que a gente sabe que coisas são importantes a nós quando percebemos o quanto nos identificamos com ela. E assim como você sempre se lembra das meninas, eu sempre lembro que Virgínia andava na ponta dos pés...

Li "As meninas" pela primeira vez ano passado. Ainda não penso em reler nenhum livro dela, exceto o "Ciranda", pelo menos não enquanto não acabar os demais que tenho aqui, de contos e memórias. Tomara que eu me apaixone por eles também!

Abraço!

Anônimo disse...

Boa tarde, Filipe!

Como é bom encontrar um postagem falando de livros de forma tão espontânea, leve e ao mesmo tempo tão informativa. É muito difícil encontrar relatos assim, pois o que mais vejo são coisas enfadonhas que caem num informativo chato demais ou em algo superficial demais para livrar-se de termos técnicos em busca de proporcionar uma leitura mais agradável. Penso que o seu relato etá na medida certa porque prendeu minha atenção do começo ao fim.

Confesso que tenho tido um pouco de resistência à literatura brasileira e quando leio são coisas mais populares como Paulo Coelho, por exemplo, ou esses romances de banca mesmo.

Preciso transitar mais por esse mundo até mesmo para me situar de que tipo de linguagem está sendo inserida nessas publicações. Ultimamente, os livros que venho pegando estão em português coloquial e eu não sei se essa é uma tendência ou se trata-se apenas de coincidência.

Gostei dos livros que você falou. Se bem que, a grosso modo, falando sem conhecer, parece que aquele das meninas tem algo que me despertaria um pouco mais. Porém, é complicado falar de um livro sem ler, sem conhecer realmente as linhas.

Parabéns pela postagem, foi algo muito interessante, produtivo, saiu um pouco do eixo filme-HQ que tanto vemos e gostamos. Eu me senti muito bem lendo tudo o que escreveu.

Abraços. Tenha um bom fim de semana

Fabiano Caldeira.

Filipe Chamy disse...

Salve, Fabiano. Fico feliz com seu interesse (e muito feliz com seus elogios). Este blog tem alguns outros posts sobre literatura, é só você clicar nesse marcador "literatura" no fim dessa postagem sobre os romances,

Literatura brasileira deve ser a que mais me interessa. Acho que é a arte brasileira que mais admiro, conseguimos um nível de expressão inigualável. Muita coisa de qualidade excepcional.

A literatura brasileira do século XX, principalmente após as primeiras décadas desse século, utiliza-se bastante da oralidade e da coloquialidade. Acho que você tem tudo para gostar, dê uma procurada nos autores mais citados por aí, tem muita coisa boa. A Lygia mesmo é uma boa opção, mas recomendo para começar o "Ciranda de pedra" ou algum livro de contos dela antes de ir para "As meninas".

Anônimo disse...

Obrigado!

Anônimo disse...

Olha só, eu vou descobrindo seu site aos poucos. Você tem me surpreendido com seus textos. Já te achava bacana pela sua sinceridade e seu posicionamento firme aonde te conheci. Agora, lendo tudo o que leio aqui, percebo algo mais amplo em sua pessoa. Algo que não encontrei naquele outro lugar justamente porque não era o momento apropriado, talvez.

Não pense que gosto de ficar rasgando seda. Sou o tipo de pessoa que quando tem que meter o pau, assim o faço sem piedade. Mas reconheço também quando há algo que me agrada ou quando a pessoas tem muitas qualidades e também acho importante falar delas.

Aos poucos eu vou lendo alguma coisa por aqui. Valeu pela dica e pela boa acolhida.

Abraços. Fabiano Caldeira.

Filipe Chamy disse...

Opa, é sempre ótimo saber que seu trabalho vem sendo apreciado. Muito obrigado! Este blog é um projeto antigo, de falar "de tudo que gosto em arte", e ainda que eu desanime constantemente, quando produzo material para ele tento fazer o melhor possível. :)