sábado, 6 de outubro de 2012

O prisioneiro

Pouco tempo antes de ver O prisioneiro, li "O castelo", de Franz Kafka. E não sei se foi uma estranha coincidência que me levou a logo em seguida ver a série, ou se todas as conexões que vejo entre as duas obras são fruto de uma percepção peculiar (e talvez equívoca) minha, como quando acabei "Don Quijote" e passei a acreditar que talvez a maior parte das narrativas dos últimos quatro séculos bebem com avidez dessa fonte inesgotável que é a obra-prima de Cervantes (o que continuo achando, por sinal).

O fato é que, assim como "O castelo", a série criada, protagonizada e em boa parte escrita e dirigida por Patrick McGoohan é também uma visão de certo modo lógica sobre absurdos institucionais. E tanto K. (protagonista do romance) quanto o Número 6 (protagonista da série) são elementos que se veem imersos num sistema que primeiro parece desprezá-los, depois talvez estranhamente necessite deles; e eles, desiludidos e nervosos, procuram sair do sufocamento, minando as estruturas daquela sociedade. Daí as duas obras possuírem o surrealismo quase na mesma medida, habitado por personagens estranhos e que por vezes parecem incompreensíveis — afinal, em que mundo se passa esses contos?

Chamo de série, mas na verdade "O prisioneiro" é uma minissérie, com apenas dezessete episódios. A sua vida curta televisiva foi talvez uma resposta a certa complexidade ainda então inaudita nesse tipo de mídia. Apesar de hoje ser bastante cultuada, a minissérie continua desagradando aos fanáticos pelas "explicações plausíveis", que teimam em procurar amparo material para a construção de alegorias e metáforas.

A chave para tudo é entender a coisa na sua própria lógica, como o deveria ser para qualquer narrativa ficcional. Então basta que se saiba o seguinte: um homem, com um trabalho específico, demite-se; contra sua vontade, é transportado a uma comunidade isolada no tempo e no espaço, chamada simplesmente de "village" (vila). O tal homem recebe a classificação de Número 6, e a todo instante é inquerido sobre as razões de sua demissão. Por meio de trapaças, sedução (by hook or by crook) e todo tipo de tortura, tentam obter os tais motivos, ou isso alegam. A minissérie descreve a vida do Número 6 na sua busca primária: descobrir quem é o topo daquela cadeia, o elo que tudo liga e coordena, o ápice daquela organização: o Número 1 (no romance de Kafka, o Número 1 é evidentemente Klamm, o oficial inalcançável). Parece uma tarefa inviável: o subalterno mais imediato a ele (o Número 2) a todo instante é trocado, demonstrando como até mesmo a segunda pessoa "em importância" naquele sistema é facilmente substituída. Quem é o Número 1?

A minissérie é um microcosmos de soluções a esse enigma. Experimentando ambientações, estruturas narrativas e desenvolvendo episódios que parecem não servir a propósito algum (parecem, apenas), os dezessete capítulos permitem uma análise bastante intensa das inquietações das personagens, sendo ainda uma descrição impressionantemente viva de estados mentais e comentários ácidos sobre política, liberdade, psicologia. É difícil classificar esse experimento, mas, retomando minha imaginosa associação de há pouco, diria que superficialmente pode-se dizer que "O prisioneiro" é a mais fiel adaptação de Kafka já feita, mesmo sem adaptar diretamente nenhum texto de Kafka.

Talvez a melhor abertura/introdução de uma série de televisão:

2 comentários:

Vanessa disse...

Fantástico! Fiquei curiosa.

Filipe Chamy disse...

Com o texto ou com o vídeo?

De qualquer modo, veja sim! Tem nem vinte episódios, vai rápido.